quarta-feira, novembro 27, 2024
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O nascimento de um drible

Kerlon “Foquinha” conta bastidores da jogada que o fez famoso e conta por que evitava o movimento em treinos

AUGUSTO ZAUPA E VANDERLEI LIMA

(DO UOL) – Um adolescente de 1,68 metro, nascido em Ipatinga (MG), esboçou uma pequena revolução técnica no futebol na primeira década do século. Ao levantar a bola na altura da cabeça para a condução em meio a adversários, Kerlon criava um movimento disruptivo que raramente se vê na evolução do esporte mais popular do planeta. Era o “drible da foca”.

A reação truculenta de adversários — que diga o ex-atleticano Coelho — e, principalmente, a série de lesões que marcou a carreira de Kerlon, abreviaram a vida do movimento que a revelação mineira, com a ajuda de seu pai, criou. O folclore do futebol, porém, nunca vai esquecer o que o atacante propunha com a bola na cabeça.

Kerlon chegou a ser tratado como o número 1 de uma geração promissora das seleções brasileiras de base. Era um grupo de talento, que tinha ainda Marcelo, lateral do Real Madrid, e Renato Augusto, volante da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2018 (e que hoje está de volta ao Corinthians), por exemplo. Agenciado pelo badalado Mino Raiola, empresário de craques como Ibrahimovic e Pogba, o mineiro foi levado à Europa cercado de expectativa. A sequência implacável de lesões e um certo deslumbramento, como admite o “Foquinha”, comprometeram sua carreira.

Em entrevista ao UOL Esporte, Kerlon conta como criou o drible famoso na infância, com uma minuciosa estratégia desenvolvida pelo pai, e relembra que se sentia inibido de fazer o movimento nos treinos do Cruzeiro. Hoje, aos 33 anos e morando nos Estados Unidos, o atacante aposentado revela que sonha em ver o truque de volta nos campos, quem sabe através de seu filho. É o legado do “Foquinha”.

Carreira marcada por um drible

O futebol é repleto de analogias com nosso cotidiano. Em alguns casos, craques deixaram o seu nome no esporte com obras-primas criadas no gramado, como a bicicleta de Leônidas da Silva e a folha seca de Didi. Pode parecer um absurdo comparar, mas Kerlon também marcou um período ao apresentar ao mundo o “drible da foca” — a manobra rendeu ao atacante o apelido de Foquinha.

A jogada ganhou notoriedade quando Kerlon a executou em uma partida contra o Atlético-MG, em 2007, mas era conhecida de quem acompanhava aquele garoto que tinha chegado ao Cruzeiro com 12 anos de idade. O drible da foca, aliás, era treinado na base da Raposa com auxílio dos colegas.

“A primeira vez que eu executei foi numa categoria de base do Cruzeiro, num torneio que a gente foi fazer no interior de Minas. Neste jogo, o goleiro bateu o tiro de meta, e eu estava no meio do campo. A bola veio do jeito que eu treinava. Você não pensa, é tipo meio automático. Ela [bola] bateu e subiu e eu corri. Os meninos de 13 anos de idade abriram, não sabiam o que fazer, e eu cheguei na marca do pênalti e bati para fazer o gol”, contou Kerlon.

“Os meninos do meu time falaram: ‘caramba, o que é aquilo que você fez?’. Falei que era algo que já treinava. Depois, os próprios meninos me ajudavam a lançar a bola nos treinos. Mas na base não foram muitas vezes”, acrescentou.

Em 2005, Kerlon também já chamava atenção ao defender a seleção brasileira sub-17. Tanto que foi artilheiro, com oito gols, do torneio sul-americano da categoria disputado na Venezuela e conquistado pelo Brasil. Ele foi eleito o melhor jogador da competição. Meses depois, a equipe ficou com o vice-campeonato do Mundial da idade ao perder a decisão para o México — aquele time também tinha Marcelo e Renato Augusto.

Sucesso esperado não ocorreu

Habilidoso, rápido, com bom controle de bola (na cabeça e nos pés) e se inspirando em Ronaldinho Gaúcho, então no auge no Barcelona, Kerlon não teve êxito no futebol europeu.

Depois de o atacante ter ficado cerca de dez meses afastado dos gramados por causa de uma grave lesão no joelho esquerdo, o Cruzeiro negociou, em agosto de 2008, 80% dos seus direitos econômicos com o então empresário do próprio jogador, Mino Raiola, famoso por hoje representar Ibrahimovic, Pogba e Haaland. O negócio saiu por 1,3 milhão de euros (em torno de R$ 3,1 milhões à época).

A primeira parada de Kerlon na Europa foi o Chievo, da Itália. Depois, acumulou passagens por Internazionale e Ajax (HOL). O atacante ainda voltou ao Brasil para defender o Paraná e o Nacional-MG antes de embarcar para o Japão, onde jogou pelo Fujieda. Ainda atuou no futebol de Malta (Sliema Wanderers), dos Estados Unidos (Miami Dade FC) e da Eslováquia (Spartak Trnava), onde se aposentou.

“Tinha uma certa soberba acima dos outros. Ter 18, 19 anos, e ser reconhecido por uma jogada. Você começa a ganhar dinheiro, se sente com poder a mais que tem. Tudo isso eu vejo hoje como uma futilidade, aquilo não vale nada. Eu saía, como todo jogador saía. Tinha várias mulheres, eram muito fáceis. Droga, nunca me meti (…) Perdi muito tempo tirando o foco, que era jogar futebol.”

(Kerlon, em entrevista ao Lance, em janeiro de 2016)

As operações que abreviaram a carreira

A promissora carreira do Foquinha, no entanto, sofreu percalços devido às inúmeras lesões. Quando ainda tinha 25 anos, já havia sido submetido a seis operações — sendo uma em cada tornozelo e duas em cada um dos joelhos. De acordo com o ex-jogador, o prazo para a recuperação das cirurgias foi, no mínimo, de oito meses. No total, ele perdeu quatro anos.

“Acredito que cada um tem um projeto de vida que Deus escolhe, tem gente que joga a vida toda e não tem uma lesão. Tem gente que é propícia a ter mais lesões. Quem entra em campo está sujeito a tudo. Vim de uma época que tinha muitas lesões de joelho também, a gente era mal informado, os clubes eram mal informados, a fisioterapia ainda era um pouco atrasada”, analisou Kerlon.

“Hoje, eles [clubes] têm uma preparação fora de campo muito mais organizada, muito mais estudada. O atleta se protege melhor, a musculatura já é mais protegida pelo joelho. Acredito que eu tive muitas lesões por não ter tanta sorte também nisso, de estar no lugar errado na hora errada. Essas coisas acabam prejudicando.”

“Senti que estava enganando as pessoas”

Apesar de não ter obtido sucesso na Europa, Kerlon eximiu de culpa os clubes por onde passou. Quando ainda não havia completado 30 anos, decidiu dar ponto final à carreira por não suportar mais conviver com tantas lesões.

“Eles olham muito históricos de números de jogos na temporada e lesões. É a mesma coisa quando você [vai] comprar algo. O vendedor vai oferecer um carro novo, um carro muito bom, só que ele já bateu umas cinco, seis vezes, só que ele fala para você: ‘o carro está bom, mas pode dar problema’. Há uma insegurança. Era assim que eu sentia [em relação aos clubes]. Acredito que se não tivesse as lesões, poderia ter ido mais longe. Obviamente, a gente nunca sabe. Você vê muito jogador com potencial que chega, mas também cai, ou seja, manter lá em cima também é muito difícil.”

A decisão de abandonar a carreira que conduziu por cerca de 12 anos ocorreu quando ainda tinha contratado em vigência com o Spartak Trnava, da Eslováquia.

“Tive muitas lesões musculares, aquilo ali me incomodava bastante e eu já estava com a cabeça pensando em parar devido às lesões. Foi muito constante, cada mês uma lesão muscular. Já não era mais prazeroso estar em campo. Eu senti que estava enganando a mim, ao clube e as pessoas que apostaram em mim. Então, decidi parar de jogar. Retornei para o Brasil, fiquei uns seis meses pensando o que fazer porque é o processo mais difícil do atleta que ele dedica a vida toda a um esporte.”

Foquinha “nasceu” aos 8 anos

Se Kerlon ganhou fama por ser o interprete do “drible da foca”, ele poderia muito bem pagar royalties a Silvino Souza, seu pai, o arquiteto da jogada. Ele ajudou a colocar em prática o movimento de levantar a bola, conduzir com a cabeça com embaixadinhas e passar pelos adversários.

“Foi uma invenção do meu pai. A gente treinava desde muito novo, eu tinha 8, 9 anos. Após os treinos, ficava com ele treinando [outros movimentos]. Sempre tive um controle muito bom, comecei a controlar ela [a bola] na cabeça meio que sem saber, era tipo uma embaixadinha de cabeça. Ele veio e disse: ‘pô, você cabeceia bem, isso é legal, será que você pode correr dentro do campo, será que isso é permitido?'”

“A gente nem sabia de regras. Fomos pesquisar com alguns árbitros e nem eles sabiam, mas falaram: ‘acho que a bola está em jogo, não tem problema correr com ela’. Depois que tivemos esse aval, ele começou a estudar, comprar livros de visão periférica para ampliar a visão para quando eu olhar para a bola, começar a enxergar quem que está ao meu redor e não correr e bater na parede”, revelou.

“Nunca pensei [em desafiar o Neymar a fazer o ‘drible da foca’]. Sou meio tímido para esse negócio de rede social, de divulgar algo, sou meio travado para isso. Mas hoje você precisa fazer.”

(Kerlon, em menção ao melhor jogador do país na atualidade e a chance de resgatar seu drible)

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