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Vilarejo italiano conseguiu conter expansão do coronavírus com experimento inédito

(DA BBC News Mundo) – Vo’ Euganeo era, até pouco mais de um mês, somente um bonito povoado de quase 3,3 mil habitantes na região de Vêneto, incrustado em colinas vulcânicas no norte da Itália.

Povoado de Vo’ Euganeo foi palco de experimento singular durante a pandemia

Difícil imaginar que o idílico cenário se tornaria palco de um “experimento científico único” sobre a pandemia do novo coronavírus, que desde dezembro infectou mais de 380 mil pessoas e matou 16 mil pelo mundo.

O estudo, que permitiu apontar para o papel dos pacientes sem sintomas na disseminação da doença, começou no início de fevereiro, por causa de dois vizinhos internados com pneumonia em um hospital da região.

Seguindo os protocolos do país, os médicos haviam descartado, pela falta de sintomas, a possibilidade de realizar um exame para detectar se Adriano e Renato haviam contraído coronavírus. Mas um dos médicos decidiu burlar as regras e descobriu que o diagnóstico era positivo.

Só que um mistério ainda pairava no ar: como eles contraíram o vírus respiratório sem não haviam viajado à China nem tido contato com alguém com sintomas, como febre e tosse?

A única coisa que se sabia era que, pouco antes de desenvolverem sintomas, os dois vizinhos haviam passado horas jogando cartas em um bar do povoado.

Povoado no norte italiano foi submetido a um isolamento de duas semanas

A PRIMEIRA DAS 6 MIL MORTES

De repente, o quadro clínico de Adriano piorou, em 19 de fevereiro, e, dois dias, depois ele morreu. Foi a primeira morte registrada na Itália em decorrência da doença.

Na mesma noite, o prefeito de Vo’, Giuliano Martini, decretou quarentena. Foram fechados escolas, bares, lojas e até pontos de ônibus. Não haveria mais missas nem festas carnavalescas. Todos os moradores foram obrigados a ficar em casa.

Em 23 de fevereiro, o governo italiano e as autoridades regionais impuseram um isolamento da cidade.

“Era como estar em guerra”, lembra Martini em uma conversa por telefone com a BBC Mundo. “Estar preso e cercado por suas próprias Forças Armadas é muito pior do que estar em uma prisão.”

Mas o mistério de como o vírus chegou a essa comunidade ainda não havia sido resolvido.



Quase 5 mil profissionais do setor hospitalar foram infectados

TESTES EM MASSA

Em busca dessa resposta, especialistas e profissionais de saúde instalaram, em 23 de fevereiro, um centro de análise na escola da cidade para testar todos os moradores que assim o desejassem.

Nos seis dias seguintes, praticamente todos os habitantes foram submetidos voluntariamente ao teste por meio de um kit preparado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua, liderada pelo professor Stefano Merigliano.

“Isso não teria acontecido sem o espírito de colaboração de todos os vizinhos”, afirma o prefeito local.

Os investigadores detectaram o vírus em 89 pessoas, cujas autoridades ordenaram isolamento imediato em suas casas por 14 dias. Outra coisa chamou sua atenção: entre 50 e 60% deles apresentaram poucos sintomas ou mesmo nenhum.

“Isso é algo que não havia acontecido em nenhuma das epidemias do século passado”, explica o professor Merigliano à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC).

“Ter essa porcentagem de infectados assintomáticos é perigosíssimo”, acrescenta a professora Andrea Crisanti, professor de epidemiologia e virologia do Hospital da Universidade de Pádua e do Imperial College de Londres, “porque essas pessoas seguem suas vidas habituais e infectam um número muito alto de pessoas”.

LABORATÓRIO ÚNICO

Foi nessa época que Merigliano e Crisanti propuseram ao governador de Vêneto, Luca Zaia, uma ideia: transformar o Vo’ Euganeo em “um laboratório experimental único no mundo”.

“Tivemos condições únicas para entender como esse vírus se comporta”, ilustra Merigliano. “Havia uma amostra consistente de pessoas isoladas. Conhecíamos seu estado de saúde e podíamos controlar seus movimentos e com quem eles se relacionavam. Foi perfeito.”

Com a aprovação das autoridades regionais, a partir de 6 de março uma equipe da Universidade de Pádua passou a monitorar todos os habitantes de Vo’ Euganeo. À época, a Itália registrava 4.636 infectados e 197 mortes.

“Antes, havia apenas estimativas”, diz Crisanti, “sendo que conseguimos demonstrar cientificamente duas questões fundamentais: que o período de incubação do vírus é de duas semanas e que qualquer estratégia para conter essa pandemia deve levar em consideração o alto número de infectados que não apresentam sintomas”.

Após duas semanas de quarentena, foram identificados 542 casos positivos em Vo’ Euganeo.

A identificação de pacientes sem sintomas é fundamental para mapear e evitar a disseminação da doença. Segundo um estudo coordenado pela Universidade Columbia, nos EUA, infectados assintomáticos são responsáveis por quase dois terços de todas as infecções por coronavírus, o que se mostra um desafio enorme para conter o avanço da pandemia.

PERFIL DOS MORTOS NA ITÁLIA

Na Itália, também por ter a segunda maior porcentagem de idosos na população (atrás do Japão), a taxa de mortalidade da doença causada pelo vírus gira em torno de 7,7%. Na China, onde a pandemia começou, ela girava em torno de 2,3%.

Mas essas taxas variam conforme a faixa etária. Segundo dados do Instituto Superior de Saúde (ISS), órgão subordinado ao Ministério da Saúde da Itália e que monitora a emergência nacionalmente, a média de idade dos italianos infectados pelo coronavírus é de 63 anos, sendo que 60% deles são do sexo masculino.

Os números do ISS sobre as mortes relacionadas à covid-19 mostram que a imensa maioria das vítimas convivia com pelo menos uma ou mais doenças, com maior porcentagem (37%) para as cardiovasculares.

Mas em entrevista ao programa de rádio RaiNews24, da emissora pública da Itália, Luca Lorini, responsável pelo setor de anestesia e cuidados intensivos de um hospital em Bergamo, no norte da Itália, disse que o “tipo de paciente está mudando”.

“Eles são um pouco mais jovens, entre 40 e 45 anos, e seus casos são mais complicados”, acrescentou.

RETORNO À NORMALIDADE

Em 8 de março, duas semanas depois da morte de Adriano, o isolamento do povoado chegou ao fim. A vida voltou a circular normalmente, e, a partir de 14 de março, já não havia registros diários de casos novos de infecção. Mas isso só durou seis dias.

“Era de se esperar”, afirma Crisanti. “Com que critérios se decide acabar com uma quarentena? Se isso é feito apenas baseando-se na diminuição do número de doentes, está deixando de fora todos os assintomáticos, e isso quer dizer que a doença pode voltar.”

O pesquisador admite que o experimento no povoado não é replicável em cidades maiores. Mas garante que é possível sim controlar a disseminação do vírus no âmbito de bairros, identificando rapidamente onde surgem os casos suspeitos e isolando os possíveis infectados.

Algo que a Coreia do Sul conseguiu fazer com sucesso, até agora.

Segundo especialistas, experimento somente poderia ter sido realizado em uma cidade, mas autoridades conseguem monitorar e evitar novos casos como na Coreia do Sul

Enquanto isso, a região de Vêneto acaba de lançar uma campanha paralela, também liderada pelo professor Crisanti, a fim de estudar diversas pessoas de outros grupos de risco, como profissionais de saúde, forças policiais, funcionários de mercados e motoristas de ônibus.

O objetivo, segundo autoridades da região, é realizar 13 mil exames diariamente até o fim desta semana.

Desde que Adriano morreu no hospital em Pádua, outras 6.076 pessoas perderam a vida na Itália em razão da pandemia. Na semana passada, um mês depois que ele morreu, sua família finalmente pôde realizar seu funeral.

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