(*) Celso de Mello
O projeto de lei articulado pela oposição bolsonarista, destinado a conceder anistia aos golpistas que dessacralizaram os símbolos da República e do regime democrático, representa, em sua essência, um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional. Entendo que tal pretensão encontra obstáculo na própria Constituição da República.
Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta e dessacraliza, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição da República.
O Congresso Nacional NÃO pode exercer seu poder de legislar, em matéria de anistia, (1) naquelas hipóteses pré-excluídas pela própria Constituição do âmbito normativo desse ato de clemência soberana do Estado (tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e delitos a estes equiparados, CF, art. 5o., n. 43), (2) nos casos em que o Legislativo incidir em desvio de finalidade, distorcendo ou subvertendo a finalidade dessa modalidade do poder de graça, como ocorrerá se a concessão de anistia objetivar atribuir ao Parlamento a condição anômala (e inadmissível) de órgão revisor das decisões do STF, como revela a intenção motivadora do projeto de lei perante a Câmara dos Deputados, (3) em situação que caracterize ofensa ao princípio da separação de poderes e (4) se a medida tiver por finalidade beneficiar qualquer pessoa que haja ofendido ou desrespeitado os cânones inerentes à democracia constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, em importante precedente sobre os limites do poder de graça (que não tem caráter absoluto), firmou orientação no sentido (1) de que atos concessivos do benefício da graça (indulto, graça em sentido estrito e anistia) são plenamente suscetíveis de controle jurisdicional, circunstância que legitima, plenamente, a atividade fiscalizadora do STF, a quem incumbe, por expressa delegação da Assembleia Constituinte, o “monopólio da última palavra” em matéria constitucional, (2) de que o órgão competente para agraciar não pode transgredir o postulado da separação de poderes, que traduz dogma protegido por cláusula pétrea explícita, (3) de que esse mesmo órgão (o Congresso Nacional, no caso) não pode exercer tal prerrogativa institucional com desvio de finalidade e (4) de que a concessão da graça , como a anistia, não pode beneficiar quem houver atentado contra o Estado Democrático de Direito , regime político amparado por cláusula pétrea implícita (ADPFs ns. 964/DF, 965/DF, 966/DF e 967/DF, Rel. Ministra Rosa Weber).
No caso do projeto de lei em questão, entendo que tal proposição legislativa incide em algumas transgressões à Constituição, especialmente (1) porque visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e (2) porque, ao incidir em desvio de finalidade, busca converter o Congresso Nacional em anômalo órgão revisional (ou instância de superposição) em face das decisões do Supremo Tribunal Federal , assim transgredindo o princípio da separação de poderes .
Note-se, portanto, que a proposição legislativa em tela ofende postulados constitucionais protegidos por cláusulas pétreas, tanto de natureza explícita quanto de caráter implícito. Concluindo:
Profanadores da República e conspurcadores da democracia constitucional, como todos aqueles que se envolveram na organização, na coordenação, no planejamento, no financiamento e na execução dos atos criminosos a que se refere o projeto de lei mencionado, apoiado por lideranças políticas que buscam conceder-lhes anistia, não são dignos nem passíveis de merecer esse benefício da clemência soberana do Estado, porque a tanto se opõe a autoridade suprema da própria Constituição.
(*) Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999. Artigo originalmente publicado no ICL Notícias.