Foto: Yukio Mishima, nascido Kimitake Hiraoka em Tóquio em 1925, estreou na literatura aos dezenove anos – Crédito: Nobuyuki Masaki – AP Photo – Glow Images
O marinheiro que perdeu as graças do mar dá continuidade às publicações pela editora Estação Liberdade do grande escritor japonês Yukio Mishima
Gabriel Boric, recém-eleito presidente do Chile, em sua primeira viagem internacional, visitando a Argentina, virou notícia não só pelas questões geopolíticas que debateu ao lado de Alberto Fernández, homólogo do país vizinho, mas também por ter ido a uma livraria e comprado, entre outros livros inusitados para uma pessoa em sua posição, um romance de literatura japonesa: “El marino que perdió la gracia del mar”, de Yukio Mishima. A edição brasileira deste mesmo livro é publicada agora pela editora Estação Liberdade.
NARRATIVA
O marinheiro que perdeu as graças do mar chama-se Ryuji Tsukazaki, a quem parece estar predestinado algum tipo de glória. Ele faz parte da tripulação do Rakuyo, navio cargueiro que o transporta ao porto de Santos, aqui no Brasil, e às sombrias aspirações que o atormentam. Mas não só ondulante é Ryuji: ele também aporta e é atraído pela terra firme, onde se lhe oferece uma vida muito diferente da marítima.
Yukio Mishima constrói uma engenhosa história com este personagem que trava diversas relações e é apresentado através de cada uma das perspectivas de seus interlocutores, fora a do narrador. Assim, o personagem e, por extensão, sua jornada acabam por ser multifacetados e não se deixam definir unilateralmente, dando aos leitores o que pensar e interpretar. Assim, o personagem e, por extensão, sua jornada acabam por ser multifacetados e não se deixam definir unilateralmente, dando aos leitores o que pensar.
PALAVRAS
O autor permeia ainda todo o romance com palavras como “fresta”, “orifício”, “fissura”, “rachadura”, “vigia”, por onde se espiam os acontecimentos do livro. Se por um lado as pequenas aberturas proporcionam que luz entre na escuridão, que se veja a parte pelo todo, de forma misteriosa e poética, por outro podem limitar os olhos a desconsiderarem o que não veem. No centro desse conflito, está outro personagem, o garoto Noboru, que vive espionando por um buraco na parede e precisará decidir que caminho tomar em seu amadurecimento.
O marinheiro que perdeu as graças do mar explora partidas e permanências, perdas e ganhos, individualidade e abdicação desta, amor e ódio, violência e paz, explora o convite à vida em dinâmica que é o verão e a inação, a negatividade, a penumbra do inverno, estações que, aliás, intitulam as duas partes em que está dividido este livro. 午後の曳航 ou Gogo No Eiko, conforme o título em japonês, foi publicado originalmente em 1963, enquadrando-se a meio caminho da carreira de Yukio Mishima.
Paralelamente, fica explícita a pulsão pela morte, recorrente em Mishima, inclusive com o desenlace que conhecemos.
O AUTOR
Yukio Mishima, nascido Kimitake Hiraoka em Tóquio em 1925, estreou na literatura aos dezenove anos. Somente anos mais tarde, com “Confissões de uma máscara” (1949) e “Cores proibidas” (1951), firma-se como o grande talento artístico de sua geração. Mesclando influências ocidentais e orientais, explorando tabus temáticos, como a homossexualidade e o culto ao corpo masculino, e produzindo excessivamente, a arte é, para Mishima, indissociável de suas ações.
Cada vez mais crítico da ocidentalização do país no pós-guerra, ele leva seu nacionalismo ao extremo em 1970. À frente de seu grupo paramilitar Tate no kai, invade um quartel do exército japonês em Tóquio buscando incitar um golpe de Estado que devolveria os poderes divinos ao Imperador. Sem obter a acolhida esperada, termina seu discurso e comete seppuku, tradicional suicídio ritualístico samurai, deixando perplexos seus milhões de leitores no Japão e no mundo.
ela Estação Liberdade, o autor teve publicados Kawabata-Mishima: Correspondência 1945-1970 (2019), que traz as cartas trocadas entre ele e seu conterrâneo e Prêmio Nobel Yasunari Kawabata; e o romance Vida à venda (2020).
Trechos
De repente, o amplo som de uma sirene ressoou pela janela aberta e preencheu o cômodo imerso na penumbra. Era o grito daquele mar que reverberava: forte e sombrio, sem limites, de uma impositiva e desamparada melancolia, escorregadio como o negrume das costas de uma baleia, repleto da emoção das ondas, das lembranças de milhares de navegações com todas as suas alegrias e humilhações. A sirene, carregada do brilho e da loucura da noite, trazia do profundo alto-mar o desejo pelo néctar sombrio daquele pequeno quarto.” [p. 21]
“Para Ryuji, o beijo era a morte, a morte na paixão como sempre havia imaginado. A inexprimível doçura dos lábios da mulher, a infinita umidade da boca cujo vermelho podia perceber na escuridão mesmo de olhos cerrados o mar tépido de corais, a língua que se agitava sem repouso como uma alga marinha… No sombrio êxtase causado por tudo isso, havia algo subjacente ligado à morte. Estava totalmente ciente de que no dia seguinte se separariam e teve a sensação de que poderia morrer por ela. A morte o fascinava.” [p. 80]
“Noboru sabia que, ao mesmo tempo que era tratado com carinho, também era temido. Essa doce intimidação o inebriava. Ao dirigir a eles a frieza de seu coração, percebia-se um leve sorriso no canto de seus lábios. O sorriso minúsculo visto no rosto de um aluno que foi à aula sem ter feito o dever de casa, mas com o orgulho de alguém que