A soprano Maria Lúcia Godoy, natural de Mesquita, foi uma das vozes mais expressivas de Minas no canto lírico
O canto lírico perdeu no dia 15 de maio de 2025, uma de suas vozes mais expressivas. Maria Lúcia Godoy, mineira de Mesquita, morreu aos 100 anos de idade, mudou-se ainda cedo para Belo Horizonte, onde se iniciou no canto aos 13 anos de idade. Retornou poucas vezes ao Vale do Aço. Me lembro de algumas delas, onde, possivelmente tenha se encontrado com o bispo Dom Lélis Lara, outro entusiasta do canto e da música sacra e clássica.
Coincidentemente, vi “Maria Callas”, do chileno Pablo Larraín, filme que narra os últimos dias da soprano greco-norte americana, cuja voz, enquanto cantou, era coisa rara em razão da escala tonal que atingia – e me dei conta de que tínhamos uma joia bem perto de nós e cujo valor ignorávamos. Assim como continuamos a ignorar outras preciosidade e talentos da música regional, inclusive da música clássica, como a Orquestra de Câmara. Tive a oportunidade de assistir a um concerto em Berlim e de me perguntar porque não fazia isso em Ipatinga. Foi um lampejo de consciência que espero seguir cultivando.
A revista concerto destaca que Maria Lúcia Godoy “foi um dos maiores nomes da história do canto lírico do país, com um trabalho que deu atenção particular à intepretação e divulgação do repertório brasileiro, de Villa-Lobos a Willy Corrêa de Oliveira”. Lembra ainda que “na casa da família, ela lembraria décadas mais tarde, estavam sempre reunidos artistas para serenatas e saraus. Em 2017, ao receber o título de doutora honoris causa da Universidade Federal de Minas Gerais, ela falou do período”.
PARTE DA CULTURA NACIONAL
Na época, discursou saudando a importância de faze parte da cultura nacional através da música e do canto:
“Sinto-me honrada por fazer parte da cultura do meu país, sempre buscando fazer da música uma ponte para a sensibilidade, para o crescimento humano, para o encontro com as mais profundas raízes artísticas. Sou cidadã brasileira, mineira da gema, amante da música, da arte, das letras, mas, além de tudo, parafraseando Márcio Borges e Fernando Brant, em uma de suas fabulosas canções: sou do mundo, sou Minas Gerais. Quando cerro os olhos, vem-me à memória a casa com meus pais, meus irmãos, e daquelas noites quando os amigos chegavam e, ao som dos violões que apareciam, fazíamos serestas até altas horas da madrugada.”
Além da música, Maria Lúcia Godoy, estudou Letras na Universidade Federal de Minas Gerais. “A paixão pelas letras se manifestou ao longo da vida também por meio da poesia, gênero ao qual se dedicou, lançando livros como Um passarinho cantou e Fruta no Pé; ela também foi colunista, por mais de uma década, do jornal O Estado de Minas e uma seleção de textos desse período foi publicada na coletânea Guardados de Maria Lúcia Godoy”, narra a Concerto.
BEL CANTO
No final da década de 1940, a família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ela passou a estudar com o professor Pasquale Gambardella. A chegada à capital deu impulso à sua carreira. Entre 1951 e 1952, ela ganhou o Primeiro Prêmio Lorenzo Fernandez, o concurso de solistas da Orquestra Sinfônica Brasileira e o Concurso Vera Janacopulos.
“Essa futurosa artista do bel-canto pôde evidenciar, desde os três primeiros números que iniciaram essa audição, apreciáveis qualidades. Não apenas através da emissão limpa do conteúdo melódico de cada uma dessas páginas, mas, sobretudo, no concernente ao domínio admirável dos pianíssimos, graves, e vocalizes, pudemos analisar o valor e a força do seu talento para a ingrata e delicada carreira. Em todas elas, a pronúncia escorreita logo fez-se notar, assim como as nuances de uma técnica muito bem desenvolvida e polida”, escreveu na época um crítico na revista Carioca.
Em 1956, a soprano se uniu ao Madrigal Renascentista, criado por Carlos Alberto Pinto Fonseca, Isaac Karabtchevsky e Carlos Eduardo Prates. O grupo fez história na cena musical brasileira, tendo Maria Lucia Godoy como solista em apresentações em todo o Brasil e também na Europa – o que ajudou no início da carreira internacional da artista. Nesse sentido, fundamental foi também seu encontro com a soprano Bidu Sayão nos Estados Unidos. Pouco depois, ela faria sua estreia no Carnegie Hall, em Nova York, cantando as Bachianas brasileiras nº 5 de Villa-Lobos regida por Leopold Stokowski – com o maestro, ela também se apresentaria em peças como a Sinfonia Jeremiah, de Leonard Bernstein, em concerto acompanhado pelo compositor.
VILLA-LOBOS
A relação com a música de Villa-Lobos foi um dos aspectos centrais de sua trajetória como artista. Sobre ele, ela lembraria em uma entrevista: “Certa vez, durante um concerto em Belo Horizonte, onde eu cantei a sua Invocação em defesa da pátria, vi Villa-Lobos de relance e jamais esqueci sua figura majestosa, forte. Logo quando comecei a cantar me fascinei pelas Bachianas brasileiras nº 5. Eu tinha uma vontade louca de cantá-la, mas achava que ainda não tinha estrutura, não tinha técnica suficiente, pois trata-se de uma das peças mais difíceis do canto universal. Eu cismei e passei a estudar aquelas passagens mais difíceis, até que apareceu uma estrela e a voz começou a correr livremente. Eu já tinha encontrado o caminho da linha melódica, o caminho para a voz ir ao encontro daquela melodia do Villa. Hoje, já devo ter cantado as Bachianas nº 5 mais de 50 vezes, acompanhada de violoncelos. Depois, me tomei de paixão pela obra de Villa-Lobos, que não sai mais de nenhum programa meu. O meu contato com Villa é um contato de amor, não é mera organização de programa, não é por ele ser o mais importante compositor deste país. Villa é uma força telúrica incrível e esta é a sua maior virtude. Ele tem a força da nossa terra sempre presente em sua obra. As Bachianas, por exemplo: não pode haver melodia mais inspirada que as Bachianas. É uma obra que me comove muito.”
Em 1977, ela lançou um disco inteiramente dedicado à obra de Villa-Lobos, Maria Lúcia Godoy canta Villa-Lobos, pela Polygram. Gravou também A floresta do Amazonas e as Bachianas brasileiras nº 5. Em 1983, lançou disco com as Serestas. Sua discografia também inclui canções de diferentes autores brasileiros, como Hekel Tavares, Fructuoso Vianna, Waldemar Henriques, entre outros.
HONORIS CAUSA
Em 2017, ao entregar a Maria Lúcia Godoy o título de doutora honoris causa na UFMG, o professor Mauro Chantal afirmou que, “por seu esforço contínuo, ao longo de mais de cinco décadas, para que a música brasileira chegasse a todos os continentes, por meio de inúmeros discos gravados, ou por incontáveis concertos, ela pode ser considerada o estandarte da canção de câmara brasileira. Maria Lúcia Godoy se destacou como intérprete única da canção de câmara brasileira, e seu nome é referência para estudo desse material, por sua dicção perfeita e atributos musicais inquestionáveis.”
Ao longo da carreira, ela fez a estreia mundial de obras como Procissão das carpideiras, de Lindembergue Cardoso; O canto multiplicado, de Marlos Nobre (dedicada a ela); Heterofonia do tempo ou monólogo da multidão, de Fernando Cerqueira; CantoAnts, de Rufo Herrera; Poesia em tempo de fome, de Willy Correa de Oliveira; Canticum naturale, Desafio e Romance de Santa Cecília, de Edino Krieger; Agrupamento 10, de Claudio Santoro; e Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria Araújo, de Almeida Prado.
PÁSSARO
No poema Uma voz, o poeta Ferreira Gullar definiu seu canto:
“Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando”.