(*) Wanderson R. Monteiro
Vivemos em uma sociedade regida por princípios e leis. Esses princípios e leis servem para regulamentar nossas ações, para que não ultrapassemos os limites de outras pessoas. Em tese, esses princípios e leis regulam e protegem os relacionamentos interpessoais, de modo que um não invada nem tire o espaço do outro. Para isso, temos normas que impedem ataques físicos e verbais, para que não nos firamos mutuamente.
Naturalmente, se nos importássemos de verdade uns com os outros, não seria necessário que tais regras existissem por força da lei. Bastaria o reconhecimento e o respeito. Mas essa não é a nossa realidade – e isso fica claro quando observamos o relacionamento e o trato com as crianças.
Reconhecemos que é errado gritar e levantar a voz contra um adulto, mas muitos não pensam duas vezes antes de fazer o mesmo com uma criança. Consideramos absurdo mandar um adulto “calar a boca”, mas achamos natural usar essa mesma expressão quando dirigida a uma criança. Se tais agressões verbais já são inaceitáveis entre adultos, o que dizer, então, quando são praticadas contra os pequenos?
Muitas dessas agressões surgem em momentos de raiva, em ações impensadas que, se fossem praticadas contra adultos, trariam consequências imediatas — seja pela reação da outra pessoa, seja pela força da lei. Mas, quando cometidas contra crianças, ainda se acredita ter o direito de mandar “engolir o choro”, certos de que não haverá consequências justas nem imediatas para tais atos.
Mas essas consequências vêm. E voltam em forma de trauma. E o pior? É, novamente, a pessoa ferida quem sofre as consequências dessas ações.
Na teoria psicanalítica, Freud nos mostrou que nada do que é recalcado permanece enterrado para sempre. O trauma infantil, quando não elaborado, retorna mascarado em sintomas, angústias e repetições. Aquilo que foi silenciado no choro “engolido”, no grito reprimido, no gesto sufocado, retorna — seja em fobias, em crises de ansiedade ou em dificuldades de se relacionar. O retorno do recalcado é a prova de que a dor não desaparece: ela apenas muda de forma.
Assim, quando uma criança é violentada verbal ou fisicamente, aquilo que o adulto imagina ter “passado” não se dissolve: apenas se oculta no inconsciente. Mais tarde, essas marcas se manifestam na vida adulta, cobrando um preço silencioso. A sociedade, que despreza tais feridas, depois se espanta ao ver gerações ansiosas, inseguras, fragmentadas. Mas o que é a angústia coletiva senão o eco dos traumas individuais nunca escutados?
Eles sempre voltam. O recalcado retorna, os traumas ressurgem e, se não forem tratados, continuarão a governar vidas de forma invisível. O que foi semeado na infância floresce no adulto — e, se não for cuidado, o fruto é amargo.
Com isso, voltamos à questão dos princípios e das leis. Como dito, os princípios e as leis existem para conter nossos impulsos, porque o respeito espontâneo raramente se manifesta. Mas, quando um adulto usa sua força e autoridade para esmagar uma criança — pelo grito, pela humilhação ou pela violência — não é apenas a lei que se viola, é o próprio princípio humano que se dissolve. Assim, semeiam-se não apenas as infrações do presente, mas também as feridas do futuro, que carregarão para sempre as marcas das injustiças sofridas na infância.
(*) Wanderson R. Monteiro é escritor e articulista.
Autor de São Sebastião do Anta – MG.