terça-feira, novembro 4, 2025
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Quando o Estado sobe o morro para esconder sua ausência

(*) Mauro Falcão

A favela não nasceu por acaso. Ela é o resultado de uma engenharia social silenciosa, conduzida ao longo de décadas por uma elite que, ao moldar a cidade, empurrou os pobres para longe — como se a desigualdade pudesse ser removida com pás de concreto e muros invisíveis. O morro e a periferia surgiram como refúgio, não por escolha, mas por expulsão.

O Estado, que deveria ser o guardião de todos, sempre serviu aos que habitam o topo da pirâmide. Seu olhar, enviesado e seletivo, raramente se volta para as vielas e becos onde a sobrevivência é diária. Na ausência do Estado, o vazio foi ocupado. Forças paralelas se ergueram, oferecendo uma falsa proteção, um simulacro de pertencimento. “Deixem-nos aqui, e tudo ficará em paz” — dizem. E a paz, comprada pelo medo, instalou-se como regra.

Essas forças compreenderam melhor do que o Estado o que o povo precisava: alimento, reconhecimento, alguma forma de poder sobre a própria miséria. Em troca, exigiram silêncio, lealdade e, sobretudo, proteção. A comunidade, então, tornou-se escudo. E nesse escudo, os criminosos encontraram seu refúgio.

Mas todo poder precisa de combustível — e o combustível é o dinheiro. É fora da favela que ele nasce e retorna. São os consumidores das zonas nobres, dos condomínios murados e das festas luxuosas, que sustentam o império que fingem repudiar. A mão que aponta o dedo é a mesma que paga o preço do vício.

E no meio dessa engrenagem cruel, há mais uma vítima esquecida: o policial. Filho do povo que o Estado abandonou, ele é lançado ao morro como soldado de uma guerra que não criou. O governante, que jamais subiu o beco nem sentiu o cheiro da pólvora, ordena de longe que ele avance — e arrisque a vida, se preciso for. A cada operação, o policial paga com o corpo a dívida moral de uma sociedade que finge não ter culpa.

Enquanto isso, o discurso moralista ecoa: “A favela é perigosa, é o berço do crime.” Mas o crime não nasceu na favela — ele apenas encontrou nela abrigo. Nasceu da indiferença, da exclusão e da cobiça dos que nunca precisaram descer o morro para saber o que é fome.

Está passando da hora de invertermos o olhar. Não há como compreender a violência sem compreender a ausência que a antecede. A favela não é o problema — é o espelho. Um espelho que reflete o fracasso coletivo de uma sociedade que criou suas próprias sombras e, agora, teme o que vê.

(*) Mauro Falcão, pesquisador e escritor brasileiro

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