(*) Jorge Ferreira
Tom Hanks protagonizou o filme “O resgate do Soldado Ryan”. Trata-se de uma emocionante história construída em torno do sacrifício de muitos soldados para resgatar apenas uma vida. O sacrifício de muitos para preservação da vida de poucos é um valor encontrado em culturas de várias nacionalidades, diversas religiões, instituições de muitos matizes e diferentes organizações.
A Pandemia gerada pelo novo corona vírus, o Ecovid-19, nos lançou também nesse dilema de fundo ético e contorno moral, assim posto: é correto deixar que os idosos do lugar em que vivo corram o risco de se infectarem com o ecovid-19 em nome da manutenção da fonte da minha renda (meu lucro ou meu salário)?
Ora, o que nos faz humanos, afastando-nos da condição de reagir como puro animal diante de fatos, é a capacidade que temos de sacrificar as nossas necessidades primitivas, as fisiológicas e as relacionadas com o sentimento de segurança, para que se mantenham íntegros os valores que conseguimos conquistar (éticos, morais, religiosos, sociais), em nosso caminhar evolutivo. São tais valores que nos fazem passar fome para que nossos filhos se alimentem; que não durmamos para velar pela segurança de alguém ou até suportar uma tortura, sem delatar amigos, companheiros e compatriotas.
Agora, desafiando a recomendação científica mundial, muitos brasileiros passaram a defender a tese no sentido de que a reabertura das atividades comercial, educacional, de serviços e industrial, será mais benéfica para a maioria, do que o mal que possa infligir ao grupo de risco (os idosos, os alérgicos, as pessoas que têm a saúde já debilitada. Ressuscitam o pensamento utilitarista de Bentham: É melhor um idoso morrer do que muitos perderem o emprego. Falsa posição, mesmo na estrita exegese utilitarista.
Parece lógico, para a maioria dos governantes e dos infectologistas, que o isolamento vertical proposto pelo Presidente Bolsonaro é uma falácia, pois não há nenhuma garantia quanto à eficácia da redução da expansão do ecovid-19 pelo simples isolamento do grupo de risco. Precisaríamos de ser um país muito rico e muito disciplinado para atingir tal propósito.
O retorno abrupto às atividades econômicas, indiscriminadamente, sem planejamento, aumentará astronomicamente a probabilidade de contágio pelo ecovid-19 das pessoas do grupo de risco e serão jogados na cova dos leões os jovens; os trabalhadores que retornarem às suas atividades.
Medidas restritivas são necessárias em situações excepcionais, mas elas não atingem todos de forma igual. O comércio é a atividade econômica que mais sofre com as restrições, tema inclusive de uma crônica muito perspicaz do escritor português Fernando Pessoa. É um fato social que qualquer comerciante deveria considerar no seu inseparável mundo do risco empresarial.
No Brasil, no meu sentir, o Presidente da República caminhava bem com sua equipe econômica. Uma razoável probabilidade de crescermos economicamente e diminuir o desemprego, mas tivemos um incidente no percurso. A economia agora não mais crescerá. Ilusão pensar que a atividade econômica plena será restabelecida pela simples quebra do isolamento, como pensa o Presidente.
A força jovem de trabalho será contaminada. Provavelmente a maioria dos jovens sobreviverá, mas serão muitos os afastamentos compulsórios do trabalho. Quem produzirá eficazmente sabendo que seu colega ao lado pode ser um hospedeiro do ecovid-19?
O que me parece mais razoável é a receita da OMS. Isolamento geral que inexoravelmente reduzirá a atividade econômica. Muitas empresas não sobreviverão. Muitos postos de trabalho serão perdidos, mas isso não significa passar fome e desassistir a família. É o momento de criar, imaginar e reconstruir. É o momento de o governo mostrar a razão de sua existência.
O primeiro valor é a vida. Não se trata de proteger o idoso porque ele é idoso, mas porque ele é gente. Quebrar o isolamento, reabrindo o comércio, as fábricas, aglomerando pessoas no transporte público, é conscientemente aumentar a probabilidade de o idoso ser infectado, amparando-se na falsa escusa moral de que a economia não pode parar. Economia não para. Atividades econômicas sim, mas nós as reinventamos. O que não se reconstrói é a perda da dignidade humana, ou melhor, o abrir mão da condição humana.
(*) Jorge Ferreira S. Filho. Advogado. Professor de Direito. Articulista. E-mail professorjorge1@hotmail.com