domingo, novembro 24, 2024
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Os monstros da política

O problema não é a lei, é o guarda da esquina

(*) Gaudêncio Torquato

Governantes das mais diferentes ideologias dão efetiva contribuição à degenerescência da arte de governar, pela qual Saint Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, já expressava, nos meados do século 18, grande desilusão: “Todas as artes produziram maravilhas, menos a arte de governar, que só produziu monstros”. A frase se destinava a mostrar o perfil dos ditadores.

Hoje, a insanidade continua a pavimentar o caminho dos governantes. Canalhice, mediocridade, vaidade, ignorância, hipocrisia, populismo inundam os espaços públicos.

Lembram-se de Silvio Berlusconi, na Itália, flagrado em suas festas “bunga-bunga”, que abrigava a prostituição de 26 garotas a ele levadas por uma rede de quadrilha e prostituição? Berlusconi se prepara para reentrar no cenário político. Lembram-se dos famosos flagrantes de dólares na cueca envolvendo figuras de nossa política?

Vladimir Putin exibe para a comunidade um perfil atlético de esportista e se mostra um denodado defensor da soberania russa, mas há mais de três meses fustiga a Ucrânia, deixando em cinzas o território de um-satélite da ex-URSS. Motivo? Quer integrar partes do país à Rússia. Uma superpotência mundial destruindo um vizinho, sob o olhar perplexo do mundo.

A mais recente cena que causou estupefação no planeta foi o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro, detido pela Polícia Rodoviária Federal por não usar capacete, forçado a entrar no porta-malas de um carro, onde os policiais jogaram uma bomba de fumaça. Um ato que lembra a câmara de gás dos campos de concentração nazistas.

Lembram-se de Pedro Aleixo, vice-presidente do marechal Costa e Silva. Referindo-se ao AI-5, dizia: “O problema de uma lei não é o senhor (Costa e Silva), nem os que governam o país com o senhor. O problema é o guarda da esquina”.

O que explica a propensão de homens públicos a assumirem o papel de atores de peças vis, cerimônias vergonhosas e, ainda, abusarem de linguagem chula, incongruente com a posição que ocupam? O que explica a imagem de parlamentares mexendo no orçamento para inundarem com recursos o pleito eleitoral? Governantes cooptando apoio parlamentar com o anzol da grana?

A resposta: a despolitização e a desideologização, o baixo nível de institucionalização do país, a secular cultura política, fatores que, no Brasil, ganham expansão na esteira da deseducação das massas.

Os mecanismos tradicionais da democracia liberal, aqui e alhures, estão degradados. Retomo, aqui, o paradigma do “puro caos”, que o professor Samuel Huntington (Harvard, EUA) identifica como fenômeno contemporâneo e que se ancora na quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, nos cartéis de drogas, na destruição das famílias, em ondas de criminalidade, enfim, no declínio da confiança na política.

Os exemplos estão em toda a parte. Como se pode exigir respeito dos cidadãos se os dirigentes não são o melhor espelho para refletir padrões de comportamento? Atravessamos um dos mais conturbados ciclos da política. A imagem de Saint Just, que abre este artigo, cutuca nossa consciência e corrobora o fato de que a arte de governar tem sido um laboratório de monstros.

Como se pode elogiar um grupo de policiais que agiram contra um doente mental? Como é possível alguém, com um mínimo de responsabilidade, vir a público para pregar a violência, a necessidade de armar a população, o escárnio ao Poder Judiciário, entoando um hino de guerra para mobilizar guerreiros?

A esfera pública virou arena de interesses, atraindo pessoas de todos os naipes. Bifurca-se o caminho da Res Publica com a vereda do negócio privado. O diagnóstico é de Hannah Arendt: “A sociedade burguesa, baseada na competição, no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia.”

A atividade econômica passou a exercer supremacia sobre a vida pública. Os eleitores se distanciam de partidos, formando núcleos ligados ao trabalho e à vida corporativa – sindicatos, associações, movimentos. Eis a nova face da política. Esses espaços terão importância no processo decisório que vai eleger o novo mandatário-mor.

Infelizmente, teremos de conviver por bom tempo ainda com as rixas:  parlamentares se atracando em plenários, brigas de ruas entre militantes, propinas, apupos e aplausos.

O que fazer para limpar a sujeira que borra a imagem da política? A reengenharia voltada para o resgate da moral é tarefa para mais de uma geração. Primeiro passo: o homem público deve cumprir rigorosamente o papel que lhe cabe. Segundo: os que saem da linha e descumprem a lei serão punidos. Terceiro: revogam-se as disposições em contrário.

(*) Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato

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