Cultura

Massacre de Ipatinga: aço, sangue e progresso

Jakson Goulart

O dia 7 de outubro já passou, é verdade, mas nunca é demais relembrar essa data emblemática da história de Ipatinga e, por extensão, do Vale do Aço e de Minas Gerais. Uma parte da história do município que parece ter sido esquecida mas que, graças a alguns marcos, como uma escultura no centro de Ipatinga, na chamada “Praça da Bíblia” – em frente ao “Camelódromo” – ainda sobrevive.
De todos os episódios da história do Vale do Aço, o mais sangrento, certamente, é o que ficou conhecido como “Massacre de Ipatinga”, um conflito entre operários da Usiminas e a Polícia Militar ocorrido no dia 7 de outubro de 1963 e que, até hoje, passada mais de meia década, ainda suscita polêmicas e versões contraditórias.
O “Massacre de Ipatinga” já rendeu inúmeras teorias, estudos e livros que se debruçam sobre os acontecimentos daquele dia e que buscam, entre outras coisas, identificar as razões do conflito e saber o número real de mortos e feridos. Uma busca que, entretanto, está longe de chegar ao finl. Um desses estudos, e pouco conhecido, foi produzido pelas juristas ipatinguenses Giovana Prado Calhau e Vanda Maria Sampaio Ferreira Ribeiro, intitulado “História de Ipatinga: aço, sangue e progresso”, que analisa vários fatos relacionados a esse macabro episódio.

PASSADO NEFASTO E ENIGMÁTICO

Para as autoras, “retroagir no tempo para trazer à baila a trágica história da cidade de Ipatinga é ressuscitar um passado nefasto, enigmático e, ao mesmo tempo, paradoxo”. Nefasto, principalmente, como justificam as autoras, por causa do derramamento de sangue humano, de trabalhadores e pessoas que buscavam uma oportunidade no “eldorado” que se anunciava.
Em seu trabalho, Giovana Calhau e Vanda Ribeiro buscam contextualizar os fatos, lembrando que, antes da existência do povoado, as terras onde hoje se localiza o mais próspero município do Leste de Minas Gerais eram habitadas pelos índios botocudos, da tribo dos Zamplants, da grande nação tapuia, que entre os séculos XVI e XVII dominavam uma grande extensão territorial às margens dos rios Doce e Piracicaba.

OMISSÃO
As duas juristas autoras da pesquisa consideram “enigmático” o confronto entre os operários e a PM ocorrido naquele 7 de outubro de 1963, apontando uma série de controvérsias e de versões diferentes sobre o acontecimento para expor a “omissão das instituições educacionais sobre esse relevante episódio”.
Embora o episódio tenha sido fartamente noticiado na imprensa nacional – sobretudo no extinto “Diário da Tarde”, de Belo Horizonte –, Giovana Calhau e Vanda Ribeiro questionam o fato de o chamado “Massacre de Ipatinga”, ainda hoje, ser pouco difundido e estudado nas escolas da própria cidade.
Muito se divulgou e se estudou sobre o golpe militar de 1964 e de outros fatos, menores ou maiores, relacionados à tomada do poder pelos militares, mas quase nada do que ocorreu em Ipatinga virou literatura, em que pesem as oito mortes – conforme os números oficiais –, entre as quais de uma criança de três meses, e inúmeros feridos.
As duas juristas são contundentes em suas críticas:
_ O ‘Massacre de Ipatinga’, proeminente episódio no contexto histórico nacional, não foi inserido na História do Brasil. Os estudantes brasileiros, principalmente os ipatinguenses, praticamente, não tiveram e, até a contemporaneidade, não têm conhecimento do calamitoso passado da cidade de Ipatinga. O silêncio desse fato parece ter sido sepultado junto às vítimas, não sendo fonte de conhecimento nas escolas públicas e particulares.
Giovana Calhau e Vanda Ribeiro ainda completam:
– Não foram apenas as instituições educacionais que emudeceram o catastrófico ‘Massacre de Ipatinga’. As pessoas que participaram direta ou indiretamente do conflito, quase sempre, evitavam falar sobre o assunto, mostrando-se indecisas, enquanto outras demonstravam pávido ao mencionar qualquer questão que se referisse à chacina que ocorreu em 1963 na cidade de Ipatinga. (…) Ainda se percebe na maioria das pessoas um temor inexplicável, preferindo fugir da árdua realidade de um passado macabro, deixando, quase sempre, a transparência do receio de retaliações.

ESTOPIM
A insatisfação que virou o estopim para a revolta dos trabalhadores da Usiminas no longínquo ano de 1963 “não surgiu de um momento para outro”, como acentuam as pesquisadoras. “Desde o início da construção da usina já se notava o descontentamento da classe operária, que foi gerada pelas péssimas condições de vida e de trabalho que eram impostas aos trabalhadores. O povoado de Ipatinga não tinha infraestrutura para receber a grande quantidade de imigrantes, que, de acordo com dados oficiais totalizaram em média, 15.000 pessoas”, ressaltam.
O sonho de uma vida melhor, que atraiu milhares de “forasteiros” para a cidade que se formava, muitos hoje chamados de “pioneiros”, transformou-se em pesadelo no dia 7 de outubro de 1963. Alojamentos e barracos de madeira, com piso de terra e sem nenhuma infraestrutura e condições de higiene, onde os operários eram amontoados, contrastavam com a cidade planejada pela empresa. Esse foi o fermento da revolta, que crescia à medida que se escancaravam as desigualdades em relação aos engenheiros e estrangeiros – principalmente japoneses – trazidos para tornar real o sonho da industrialização do então rincão das Gerais.
Há algumas versões sobre o início do conflito, uma das quais reproduzimos a partir do livro “O Massacre”, publicado em 1984 pelo jornalista Carlindo Marques, que por muitos anos morou em Ipatinga e hoje vive na Região Metropolitana de BH:
_ Não havia respeito com os operários que laboravam na usina. Eram revistados na entrada e saída em cada turno, um a um, de maneira degradante. Os apelos não eram atendidos, ficando cada vez mais difícil a posição dos trabalhadores. Nesse ínterim, na saída do turno, os vigilantes fizeram a revista, como era praxe da rotina de empresa, e encontraram um operário com um resto de leite que havia sobrado do lanche com o intuito de levar para o filho. Um vigilante, então, atirou contra o recipiente, por pouco, quase acertando o trabalhador.

EXPLOSÃO

Para as autoras de “História de Ipatinga: aço, sangue e progresso”, esse incidente narrado no livro de Carlindo Marques “foi o último e humilhante episódio vivenciado dentro da Usiminas antes da chacina”. Na sequência, a massa operária reagiu explosivamente, abrindo o portão da usina à força, e a Polícia Militar foi acionada, com o reforço de vários homens e potentes armas.
Da portaria da Usiminas o conflito se estendeu aos alojamentos dos operários, localizados no bairro Santa Mônica, e muitos deles foram presos e espancados, o que só aumentou o conflito. De sua parte, os amotinados montaram barricadas para o confronto. Um dos pontos mais visados pelas forças policiais foi o chamado alojamento “Chicago Blitz”, onde ficavam os empregados das empreiteiras da usina, que sentiram na pele – literalmente – os resultados da fúria dos homens fardados. A partir daí, a situação ficou fora de controle e, ao final daquele dia 7 de outubro foram contabilizadas, oficialmente, oito mortes. Ainda hoje, porém, há uma grande controvérsia quanto a esse número.

FONTES

Durante muitos anos, como constataram Giovana Calhau e Vanda Ribeiro em sua pesquisa, as únicas informações tinham como origem fontes oficiais, inclusive as divulgadas pela imprensa. A primeira explicação oficial foi reproduzida no dia 8 de outubro de 1963, na edição 21.197 do “Diário da Tarde”:
_ Na véspera, operários da companhia entraram em atrito com os rondantes da própria empresa, por causa da exigência feita aos operários no sentido de que apresentassem ao corpo de segurança da Usiminas a carteira funcional. A exigência é tida como indispensável, pois aquela companhia emprega número muito grande de operários. Houve luta e foi necessária a presença de soldados do Destacamento local. O incidente foi encerrado e tudo parecia normalizado, pois os trabalhadores recolheram-se aos seus dormitórios. Pela madrugada, soldados invadiram o alojamento de Santa Mônica e passaram a espancar os operários. Trezentos homens foram retirados dos seus leitos e jogados no chão com as mãos na nuca. Os trabalhadores, revoltados com as atitudes de alguns policiais, resolveram entrar em greve para pedir o afastamento dos militares da cidade.
Na mesma edição, o DT narra a reação dos policiais o e o saldo trágico da refrega:
_ Os militares subiram num caminhão e passaram a metralhar populares que transitavam pelas ruas daquele centro industrial, matando seis pessoas e ferindo sessenta e nove. Logo após, comandados pelo capitão Robson e tenente Jurandir, entrincheiraram-se nos morros da localidade, temendo a reação de sete mil operários da Usiminas e firmas empreiteiras. Uma criança de três meses de idade foi varada pelas balas, quando estava nos braços de sua mãe, que caiu gravemente ferida. Um cego que estava nas ruas pedindo esmolas, morreu em conseqüência dos disparos do bando. Cinco operários morreram nas dependências da companhia quando protestavam pos atos de violência praticados na véspera pelos criminosos.
Três dias depois do conflito, a situação começou a voltar à normalidade, com a intermediação direta dos líderes metalúrgicos e do então secretário de Segurança Pública do Estado, Caio Mario, e do coronel Jose Geraldo de Oliveira, comandante da Policia Militar, além de religiosos e representantes da Usiminas.

PARADOXO

“Paradoxo”, na opinião das autoras do estudo, é o termo que melhor explica essa parte da história de Ipatinga, na qual “a bifurcação de aço e sangue desperta o progresso”.
Fazendo referências também à origem do nome da cidade, proveniente do tupi-guarani, que traduz Ipatinga como “pouso de águas limpas”, Giovana Calhau e Vanda Ribeiro concluem que “um rio de sangue desaguou nas ‘águas limpas’ que saciaram a sede dos fundadores da Usiminas e de muitos trabalhadores, mas não se sujaram, não se contaminaram.Muitos contribuíram com a vida para que Ipatinga crescesse e se tornasse justa e forte.”
Passados 54 anos, buscar o passado, fazendo-o presente, como forma de construir e/ou reconstruir a lúgubre história de Ipatinga, éuma oportunidade rara de trazer à tona o seu contexto histórico, fazê-lo conhecido e divulgado, tornando-o imorredouro no conhecimento e na lembrança das pessoas, e inserindo-o como importante e significativo acontecimento na Historia não só de Ipatinga, mas do Brasil.

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