quarta-feira, novembro 27, 2024
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“Enquanto formos boiada, não há salvação”, diz Ailton Krenak

Em seminário no Unileste, autor de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” critica a sociedade de consumo, a destruição ambiental e propõe ressignificar cidades, lugares e a própria existência no mundo

(DA REDAÇÃO) – “A mudança tem que ser cabeça, tronco e membros. Tem que envolver a pessoa humana e não ser apenas uma ficção espiritulista. Acredito nisso: na mudança do ser humano, na mudança da consciência, e ela é individual. O coletivo só muda se mudar o individual. Não pode ser boiada. Enquanto for boiada, não temos salvação. Vamos todos para o buraco”. A afirmação é do filósofo, escritor ambientalista e líder indígena Ailton Krenak durante a 4ª edição do Seminário de Educação, realizado pelo curso de Pedagogia do Unileste, com o tema “Ideias para adiar o fim do mundo: que humanidade queremos ser?”

POESIA E TRAGÉDIA

Durante o seminário, Ailton Krenak citou o poeta itabirano Carlos Drumond de Andrade mais de uma vez, lembrando o poema “Confidências de um Itabirano”, que diz que “Itabira é apenas um retrato na parede” e “No meio do Caminho”, ao recitar o verso “tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra”. Em ambas as situações referia-se à exploração e devastação ambiental em Minas Gerais, como a exploração secular do minério de ferro que resultou numa das maiores catástrofes ambientais no rio Doce com o rompimento da barragem da Samarco e BHP Billington. O rompimento de barragem em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019 foi o maior acidente ambiental no Brasil em perda de vidas humanas e o segundo maior desastre industrial do século. É considerado um dos maiores crimes ambientais da mineração do país, depois do rompimento de barragem em Mariana, responsável por despejar uma enorme quantidade de lama tóxica de rejeitos de minério que contaminou toda a bacia da nascente à foz do rio Doce.

Defensor intransigente do respeito à natureza, ao rio Doce, que considera um parente próximo, às montanhas e às matas, Ailton Krenak fez críticas contundentes à sociedade de consumo – pela destruição ambiental, pelo consumo desenfreado, sem responsabilidade ambiental e com o futuro da humanidade. Ele também não poupou os organismos internacionais – pela ausência de ações concretas para enfrentar problemas como as mudanças climáticas, os desastres ambientais, a falta de uma politica educacional no pós-pandemia, como no caso da Unesco.

Autor de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Krenak salienta que o livro não é um manual de sobrevivencia, mas antes uma provocação. Na obra ele diz que as diferentes tribos indígenas do País conseguiram sobreviver às tentativas de extermínimo vividas a séculos criando “paraquedas coloridos” (diversas formas de resistência) para evitar sua aniquilação completa.

DESENVOLVIMENTO OU ENVOLVIMENTO

Indagado se no atual cenário, de extremos climáticos, negacionismo do clima, consumo exacerbado, destruição ambiental, etc, ainda é possível adiar o fim do mundo, ele diz que esta é uma questão urgente. Morador de uma aldeia krenak no médio rio Doce, de onde saiu ainda jovem e para onde retornou agora, Ailton implode os modelos insustentáveis do mundo moderno, das grandes metrópoles onde se empilham pessoas em prédios enormes e onde as relações com a natureza e a própria humanidade cada vez mais vão perdendo espaço.

“Se a gente conseguisse pensar que é possível nos dirigirmos a pessoas que estão em lugar de educadores, administradores, planejadores, a gente teria que reunir essa excelência toda de gente comprometida com ideia do mundo, e discutir como adiar o fim de alguns mundos. O mundo de uma família ou de uma comunidade que vive no médio rio Doce, não é mesmo mundo das pessoas que vivem em Belo Horizonte. É outro mundo. Se você pensa numa comunidade em Mato Grosso ou em Rondônia, é outro mundo, do ponto de vista do que é disponsível para suprir as necessidades ideais para se viver. Durante uma entrevista com um jornalista inglês Mahatma Ghandi responde à pergunta se o que se produzia no mundo era suficiente para todos viverem. Ghandi diz que na terra tem o suficiente para todas as necesidades, mas só para nossas necessidades. Se quiser ter muito, a casa, o helicópetro, a casa na praia, se quiser ter tudo, não dá. A pergunta nos remete para a resposta de Ghandi e para a questão das comunidades diferentes. Esse mundo, ganancioso, eu não quero adiar. Esse mundo tem que ser encerrado, ele é exacerbado. Ele está no mundo para consumir tudo. Exaure muito mais o planeta viver naquele lugar de ganância, de querer tudo para si. Temos que reconfiguarar a ideia de metrópole, progresso, grandes cidades. Por que usar o termo desenvolvimento e não usarmos envolvimento?”, propõe.

EDUCAÇÃO FORDISTA

Numa abordagem voltada para os estudantes de Pedagogia, Krenak critica o conceito tradicional de educação, que ele considera uma linha de montagem fordista.

“Tem uma história que é muito utilizada por educadores. O próprio Leonardo Boff, conta esta história do menino que chegou pro avô e perguntou: ‘Avô tem dois lobos que não me dão sossego. Qual deles, vai vencer?’

‘Meu neto, responde o avô, o lobo que vai vencer é aquele que você melhor alimentar’. Ailton Krenak se apoia na parábola para afirmar que no século XX, a educação significava carrear milhares de alunos para a sala de aula, para reproduzir socialmente esse mundo em que ele cresceu e que deveria perpetuar. “No século XXI continua isso e as escolas não param para pensar, o movimento contínuo, perpétuo, não permite, até que veio a pandemia. Aí, o mundo inteiro levou um choque. As pessoas tem que se perguntar para que estamos preparando nossos filhos. Para aquela coisa pré-pandemia ou vamos pensar um novo mundo, fora do novo normal? Novo normal é o cara que tomava uma cerveja Brahma e agora vai tomar outra cereveja, que fumava uma porcaria e vai fumar outra”, diz ele, para constatar que a humanidade está doente e não parece se preocupar muito com isso.

ESCOLA RESSIGNIFICADA

“É uma humanidade doente. Eu vi durante a pandemia a possibilidade da gente ressignificar a própria ideia da escola. Nem estou falando da educação, mas da escola, porque a gente normalizou que a educação acontece na escola. Vamos continuar com a ideia de que a educação é a escola, uma lógica industrial da escola, que implica em reproduzir em série, como o fordismo, como uma linha de montagem? Isso me parece aquela ideia do Chaplin, em O Grande Ditador, do operário entrando naquela engrenagem com uma ferramenta na mão, sendo moído, triturado pela máquina. Parece que estamos em estado de choque ou vencidos pela realidade, ninguém questiona isso”.

Nesse ponto Krenak tece severas críticas aos organismos internacionais, entre os quais a Unesco, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para a educação e cultura. Segundo ele, o programa global da Unesco para educação não fala nada sobre mudança de paradigmas após a pandemia. “Entrei numa conferência da Unesco, quando a pandemia estava em seu momento mais crítico e fiquei chocado. O programa da Unesco para educação não tinha nada a dizer sobre como as crianças voltariam para a escola após a pandemia. Um monte de burocratas que se acostumaram a disputar estes cargos. Deve ser uma coisa incrivel, você fica naquele lugar, até pitando um cachimbo, um charuto e deixa o pau quebrar”, ironiza.

GIRINOS NO BREJO

Ele criticou as viagens espaciais sem nenhum sentido, por mero turismo ou ostentação, enquanto faltam investimentos em meio ambiente, escolas, ciência e tecnologia. “Os milionários não mandam os filhos para as nossas escolas. [Vocês] Acham que eles vão passar na frente de uma escola pública, uma universidade pública? O filho deles termina o ensino médio e já é convidado para dar uma conferência. Termina o ensino médio e está turbinado para escolas de excelência no EUA, Canadá, Inglaterra, prontos para montar uma estação espacial em algum lugar. Deixam a vida ordinária para nós, os comuns. A Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (O NU) não pensam em pessoas comuns eles pensam numa coisa que chamam de ‘cluster’, um ajuntamento, em enxame de girinos num brejo. Eles pensam pacotes para gente, nisso se resume os Objetivo do Milênio, em meio a um turbilhão de sofrimentos, riscos, flagelos e a gente tem mais é que se virar. O Banco Mundial não está nem aí se vamos falir todos, eles querem manter suas estruturas e suas castas”.

POTINHO DA NESTLÉ

Diante do abandono por governos e organismos internacionais, Krenak propõe que as pessoas retomem seu lugar no mundo com respeito à natureza, ao meio ambiente às atuais e futuras gerações. “A gente tem que pensar como comuns e quais mundos queremos. Quando publiquei o “Ideias para adiar o Fim do Mundo” muita gente pensou que era um manual de sobrevivência. Era uma provocação para não continuar reproduzindo o desastre que estamos vivendo. Temos que parar de comprar potinho da Nestlé e plantar cenoura, batata, beterraba e fazer a papinha para o bebê. O bebê que já sai da maternidade com a fralda descartável, é insustentável, já nasce como uma maquininha de consumo”.

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