“Quem sabe direito o que uma pessoa é?
Julgamento é sempre defeituoso, porque
o que a gente julga é o passado.”
(Guimarães Rosa)
Uma história forjada na luta, nas ruas e nas portarias da Usina, e um legado político reconhecido mesmo pelos mais ferrenhos adversários. Assim pode ser resumida a trajetória desse casal, que passou por várias cidades até aportar em Ipatinga e construir, em pouco mais de três décadas, uma carreira vitoriosa na política, reconhecida em nível nacional. Francisco Carlos Delfino e Maria Cecília Ferreira Delfino, ou simplesmente Chico Ferramenta e Cecília Ferramenta, somam nada menos que quatro mandatos à frente da Prefeitura Municipal de Ipatinga, três de deputado estadual e ainda um de deputado federal.
Poucas famílias têm a tradição política dos Ferramenta. Ainda que com estilos diferentes, é impossível dissociá-los. Desde a primeira campanha, ainda no movimento sindical, Chico e Cecília sempre estiveram juntos nas manifestações, passeatas, panfletagens, comícios e na difícil gestão de uma prefeitura como a de Ipatinga.
DE BOM DESPACHO A IPATINGA
Chico Ferramenta e Cecília Ferramenta nasceram em Bom Despacho (MG), no mesmo ano: 1959 – ele no dia 8 de janeiro, e ela, no dia 26 de dezembro. Chico é filho de José Delfino Neto e Adélia Alves Delfino. Cecília é filha de Manoel Daniel Ferreira e Lídia Alves Ferreira. Os pais moravam na mesma cidade, os filhos cresceram perto, e quis o destino que se casassem e escolhessem exatamente Ipatinga para formarem sua família. Uma família cujo sobrenome não veio de nenhuma árvore genealógica, mas da realidade de quem forja o aço e a riqueza de uma cidade que, em toda a sua história, se desenvolveu mais exatamente nas gestões dos Ferramenta.
Juntos ou individualmente, Chico Ferramenta e Cecília Ferramenta construíram uma vitoriosa carreira política. Ambos marcaram seus nomes na história de Ipatinga, com derrotas e vitórias, mas, principalmente, com feitos que os colocam na condição de grandes líderes, como o de ser o segundo mais votado em Minas Gerais logo na sua primeira eleição para deputado estadual, e de ser a primeira mulher de Ipatinga eleita deputada estadual e prefeita.
A ORIGEM DA TRADIÇÃO
A tradição política de Chico e Cecília Ferramenta tem origem nos movimentos sociais, em um tempo onde a repressão era ostensiva e as liberdades reduzidas. Associações de moradores, sindicatos e militantes de diversas causas sempre foram a sustentação desse casal que há quase quatro décadas tem ajudado a construir a rica história de Ipatinga, um importante pólo siderúrgico nacional que, com a ajuda de ambos, se consolidou também como exemplo de gestão e de soluções para os seus problemas.
Chico Ferramenta passou os primeiros anos de vida em Bom Despacho, ao lado dos pais e dos seus irmãos. Antes de completar 18 anos de idade mudou-se para a capital mineira, onde concluiu, em 1978, o curso de Química na Escola Técnica de Belo Horizonte. Com o diploma nas mãos, e a informação de que uma siderúrgica de Ipatinga oferecida oportunidades para técnicos em várias especialidades, Chico Ferramenta veio para a cidade em 1979.
A escolha de Ipatinga para iniciar a carreira profissional teve uma influência decisiva: a do amigo Sebastião Ferreira Guedes. Eles se conheceram em BH e vieram, juntos, tentar a sorte quando Ipatinga começava a viver o seu segundo “boom” da siderurgia. Chico e Guedes foram também companheiros de república, e da Usiminas seguiram rumos opostos, mas sempre juntos na política, até hoje: enquanto Chico virou prefeito, Guedes tornou-se vereador, ambos com três mandatos.
CAMPEÃO DE XADREZ E DE VOTOS
Antes de ser Ferramenta, Chico da Pesquisa era como os colegas de Usina o conheciam, numa alusão ao setor em que trabalhava, o Centro de Pesquisas. Em pouco tempo, conquistou o respeito e a admiração dos metalúrgicos. Fã de xadrez, e exímio jogador, foi pelo esporte que Chico começou a se tornar conhecido na empresa. Em 1982, sagrou-se campeão de xadrez na Olimpíada do Sesi (Serviço Social da Indústria), representando a Usiminas.
Admirador confesso do filósofo chinês e estrategista de guerra Sun Tzu, que viveu no século IV a.C. e deixou o tratado militar “A Arte da Guerra”, e do escritor mineiro Guimarães Rosa – de quem, aliás, sempre gostou de citar frases, seja em conversas informais ou no meio de um discurso político –, a política sindical logo entrou na vida de Chico Ferramenta. E da pior forma possível: com perseguições e demissão. Mas isso não o desanimou, afinal, como um personagem de Guimarães Rosa, ele compreendeu que o “real” não estava na saída nem na chegada – “ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
O Chico funcionário exemplar do Centro de Pesquisas logo virou Ferramenta, instrumento, mesmo, para uma histórica luta contra o peleguismo travestido de “sindicalismo de resultados” que por décadas comandou o Sindicato dos Metalúrgicos de Ipatinga (Sindipa) e contra políticos conservadores que desde a emancipação comandavam a Prefeitura Municipal. Uma trajetória de dificuldades, mas também de conquistas, na qual sempre contou ao seu lado com a presença firme de Cecília.
Escolhido por um grupo de metalúrgicos dispostos a eleger uma direção sindical mais comprometida com os trabalhadores do que com a empresa, Chico Ferramenta entrou para o movimento sindical em 1985, como candidato da Chapa 1 à presidência do Sindipa. Entidades e setores dos movimentos popular e social, com a participação também decisiva de um grupo de padres franciscanos da Paróquia do bairro Bethânia – Eduardo, João, Jaime, Jacir, entre outros –, assumiram a luta da Chapa 1, e por muito pouco uma longa história de peleguismo não era encurtada.
GANHOU, MAS NÃO LEVOU
Contra cinco adversários, a Chapa Ferramenta sagrou-se vencedora do primeiro turno das eleições do Sindipa de 1985. Ganhou, mas não levou. Na disputa do segundo turno, numa eleição em que as urnas ficavam dentro da Usina, “monitoradas” pela empresa, a Chapa 1 foi derrotada. Uma diferença pequena, mas suficiente para plantar uma semente que gerou uma frondosa árvore com frutos e sombra para todos.
Além da derrota na eleição sindical, Chico Ferramenta teve em seguida outra perda, a do emprego. O mesmo destino tiveram todos os seus companheiros de chapa, e muitos deles, sem espaço no mercado e “marcados” pela Usiminas, tiveram que mudar para outras cidades e buscarem empregos em outros segmentos. Chico decidiu continuar em Ipatinga, e teve que sobreviver por um período como funcionário de uma serralheria, mesma alternativa que coube a outros companheiros que decidiram resistir lutando.
Foi nessa época, a de maior dificuldade do casal, após a demissão da Usina, que nasceu o seu primeiro filho, Frederico, cuja gravidez não foi empecilho para Cecília acompanhar o marido em infindáveis reuniões noite adentro e em panfletagens e manifestações nas portarias da Usina. Os outros dois filhos de Chico e Cecília, Lucas e Wladimir, também nasceram em meio a campanhas eleitorais, sempre levados pela mãe e ajudados por uma grande quantidade de militantes “tias”.
DA USINA PARA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA
No ano seguinte à derrota da Chapa 1 na eleição do Sindipa, em 1986, sem recursos financeiros mas com o apoio de uma aguerrida militância e a simpatia de grande parte da população, Chico Ferramenta se lançou em outra eleição, para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Sua campanha se concentrou em Ipatinga e no Vale do Aço, e daqui ele partiu para se tornar um “fenômeno” na política mineira, primeiro como o segundo deputado estadual mais votado – atrás somente do tradicional José Laviola, já falecido –, por um partido então quase desconhecido, o PT.
Chico Ferramenta tinha 26 anos de idade quando conquistou um mandato de deputado estadual como o segundo mais votado de Minas Gerais em 1986. Uma vitória que chamou a atenção da imprensa nacional, mas que foi precedida de uma grande perda: a morte do seu pai, José Delfino, num acidente automobilístico perto de Bom Despacho, em plena campanha. Nesse dia, também viajava no carro um dos amigos antigos, da época de Usina, Eliel Miranda Tavares, que escapou ileso. E, mais uma vez, como no universo roseano, ele prosseguiu, com a certeza de que “Deus nos dá pessoas e coisas para aprendermos a alegria. Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos. Essa é a alegria que ele quer”.
“IPATINGA TEM CONSERTO”
Durou apenas dois anos o primeiro mandato de deputado de Chico Ferramenta. Em 1988, lançou-se na disputa pela Prefeitura de Ipatinga e confirmou sua fama de vencedor. Com o slogan “Ipatinga tem Conserto”, o PT pôs fim à carreira do então prefeito Jamill Selim de Sales, o único que, como Ferramenta, conseguiu três mandatos.
Até hoje o primeiro mandato de prefeito de Chico Ferramenta (1989-1992) é lembrado como o de maior desenvolvimento da cidade, em todos os sentidos. Sob a gestão de Chico Ferramenta, Ipatinga tornou-se a primeira cidade de médio porte da América Latina a contar com os serviços de coleta e tratamento de esgoto. Foram construídas várias escolas e Unidades de Saúde, e bairros que por muito tempo ficaram sem nenhuma infraestrutura ganharam urbanização e mais qualidade de vida.
PARTICIPAÇÃO POPULAR
Mais do que obras e programas sociais, um dos principais feitos dos governos de Chico foi a instituição da participação popular como “ferramenta” de governo. Acostumada a ver, até então, as decisões serem tomadas nos gabinetes, a população foi convidada a participar do debate sobre uma cidade melhor para todos. Foi aí que surgiu o Orçamento Participativo, que viria a se tornar um modelo para diversos municípios brasileiros.
Com Chico Ferramenta, a população ipatinguense se acostumou a discutir o presente e o futuro da cidade, e a indicar as suas prioridades. Antes de colocar o Orçamento Municipal em pauta, o então prefeito promoveu debates, em praças e em carrocerias de caminhões, para discutir temas sensíveis como o preço da passagem de ônibus e as tarifas de água e esgoto, movimento que, anos depois, levaria Ipatinga a se tornar a cidade da América Latina, com até 200 mil habitantes, a implantar um sistema de coleta e tratamento de esgoto.
No Congresso Municipal de Prioridades Orçamentárias (COMPOR), moradores de todos os bairros formavam um grande mosaico da cidade que, desde então, se colocou à frente em termos de participação popular. Na mesma época foram criados diversos Conselhos Municipais, dando visibilidade e voz a segmentos da população que por muito tempo ficaram à margem dessas discussões. Suspenso após o último governo de Chico Ferramenta, o COMPOR foi resgatado por Cecília.
Com grande aprovação popular, Chico Ferramenta encerrou o primeiro mandato de prefeito em 1992 e, de quebra, ainda elegeu o sucessor, o então vice-prefeito João Magno de Moura. Dois anos depois, Chico fez história novamente ao se tornar o primeiro deputado federal de Ipatinga. E, mais uma vez, o destino se repetiu: dois anos depois, em 1996, ele deixou a Câmara dos Deputados para voltar, pela segunda vez, ao comando da Prefeitura de Ipatinga. Ao seu lado, a esposa Cecília, inclusive no governo municipal, como voluntária.
ELEIÇÃO E REELEIÇÃO
Infraestrutura e habitação foram duas áreas que mais se desenvolveram no mandato de Chico Ferramenta. Em sua gestão, Ipatinga tornou a chamar a atenção pelo arrojado programa de urbanização de vários bairros e a construção de milhares de casas através de mutirões e com a participação direta dos beneficiados. O Parque Ipanema foi revitalizado e a cidade tornou-se referência também na área ambiental, com a implantação do primeiro aterro sanitário do Leste mineiro, que deu origem, depois, à primeira Central de Resíduos, que hoje atende a várias cidades.
Chico Ferramenta é também o único prefeito a conseguir, até hoje, a reeleição em Ipatinga. Isso aconteceu em 2000, o que permitiu a sequência do trabalho iniciado em 1997 e consolidar Ipatinga como modelo de administração pública, urbanismo, educação, habitação e saúde.
O GOSTO PELA POLÍTICA
Sempre ao lado do marido em todas as disputas políticas, como dentro de casa, o gosto de Cecília Ferramenta pela política é natural. Como tem sido natural também a sua trajetória, primeiro como deputada e depois como a primeira prefeita de Ipatinga. Daí também a impossibilidade de separar uma história da outra.
Cecília Ferramenta veio para Ipatinga quando o marido já trabalhava na Usiminas e já era conhecido como o melhor jogador de xadrez da empresa. Eles se casaram em 1981, em Divinópolis, e no mesmo ano mudaram-se para a cidade.
Se Chico Ferramenta era da análise política precisa e do discurso firme e incisivo, Cecília sempre foi a organizadora e articuladora, assumindo as frentes de lutas, mas atuando também nos bastidores. Em todas as eleições do marido, era sempre a responsável pela mobilização e organização da militância e dos eventos, um aprendizado que, mais tarde, ela utilizaria em suas próprias campanhas.
Nos mandatos de Chico Ferramenta, Cecília Ferramenta trabalhou de forma voluntária, mas exercendo função importante na coordenação de políticas estratégicas de governo, sempre com o olhar voltado para os movimentos sociais. Ela teve papel de destaque na organização de grupos de mulheres e da terceira idade, entidades populares e de projetos importantes como o “Habitar Brasil”, que mudou a realidade de milhares de famílias do bairro Bethânia.
A PRIMEIRA ELEIÇÃO
Depois de coordenar tantas eleições e projetos de Chico Ferramenta, era natural que, em algum momento, ela decidisse, também, se submeter às urnas. E foi assim que, em 2003, quando o marido ainda era prefeito, chegou à Assembleia Legislativa de Minas Gerais como a primeira deputada do Vale do Aço.
Com uma atuação voltada para melhorias em todo o Vale do Aço, notadamente nas cidades menores, sem representatividade política em nível estadual, Cecília foi reeleita para um novo mandato de deputada, em 2007, e também firmou seu nome na política mineira e iniciou uma trajetória própria, que, embora parecida, segue ao lado da de Chico Ferramenta, num complemento que fazem deles um casal campeão de votos.
Como deputada estadual, de 2003 a 2011, a primeira representante feminina do Vale do Aço na ALMG foi presidente da Comissão de Assuntos Municipais e Regionalização. Nos dois mandatos, levantou problemas, discutiu temas e propostas variadas, e ajudou a levar melhores condições de vida para muita gente, como os mutuários da antiga MinasCaixa, que, graças a um projeto de sua autoria, conseguiram – somente agora, em 2015 – os títulos de propriedade de suas casas.
Ainda como deputada, Cecília teve participação ativa na realização da primeira Conferência da Mulher de Minas Gerais e ajudou a tornar realidade a Coordenadoria Estadual de Mulheres. Na Assembleia Legislativa, foi ainda presidente da Frente em Defesa da Saúde da Mulher.
Paralelamente às rotinas políticas e maternas, Cecília Ferramenta se dedicava à vida acadêmica. Ela formou-se em Serviço Social e atualmente faz o curso de Direito.
A PRIMEIRA PREFEITA DE IPATINGA
Enquanto atuava no parlamento mineiro, lidando diariamente com demandas regionais e estaduais, Cecília Ferramenta viu o PT perder sua primeira eleição desde o surgimento do “fenômeno” Chico Ferramenta. E coube a ela a missão de retomar o projeto de participação popular que, por 16 anos, deu a Ipatinga alguns dos melhores indicadores de qualidade em sérvios públicos.
Com a cidade deteriorada, sem vários serviços públicos funcionando, Cecília resolveu seguir o caminho de Chico e, em 2012, tornou-se a primeira mulher eleita para comandar um dos maiores municípios de Minas Gerais, com a maior votação de história. “Para consertar Ipatinga de novo” foi o mote da sua vitoriosa campanha, que expressava, acima de tudo, o compromisso de tornar realidade o sonho de uma cidade melhor para todos.