Contratos “questionáveis” e mau uso de recursos do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica para compra de livros inúteis, kits de robótica a preços exorbitantes, desvalorização dos trabalhadores na educação e escolas em condições precárias foram temas da Audiência Pública na Câmara de Ipatinga
IPATINGA – A Câmara Municipal realizou Audiência Pública sobre “A Educação no Município de Ipatinga”, atendendo ao requerimento 51/2023 de autoria da Comissão Permanente de Educação, Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. Durante a audiência foram discutidos os principais problemas da educação na cidade e também foram feitas denúncias sobre a má aplicação dos recursos da educação e do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).
As principais denúncias dizem respeito à compra de kits de robótica e mecatrônica, de livros sobre empreendedorismo, a destinação de recursos do Fundeb para o Sebrae e manobras para votação de projetos educacionais “casados” com outros interesses. As principais denúncias foram feitas pela vereadora Professora Mariene (Patriota), presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal. Embora convocada formalmente, a Prefeitura não enviou nenhum representante para a Audiência.
AUSÊNCIA
A coordenadora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (SindUTE), Hélvia Cintia Rodrigues de Oliveira, destacou a participação de educadores na audiência e lamentou a presença de representantes do governo municipal. “Está bonito de se ver e estaria ainda mais se o governo estivesse aqui para nos ouvir. A gente esperava, porque precisamos esperançar, mas, certamente, devem estar nos acompanhando ainda que remotamente. Conseguiremos, mesmo com a ausência do governo, fazer o debate e sair daqui com diretrizes e encaminhamentos”, disse ela.
Cíntia disse que além de representar a Subsede, representava cada trabalhador da educação, porque a categoria é uma só. “Viemos nesta audiência na expectativa de que sejamos ouvidos e atendidos pelo poder público. Como todos sabem estamos em plena campanha salarial pelo cumprimento do reajuste, pagamento do Piso e pela melhoria da educação”, salientou.
VALORIZAÇÃO E PROPAGANDA
A coordenadora da Subsede do SindUTE disse ainda que a educação pública é ameaçada pela mercantilização e o Sindicato defende uma educação cidadã, o que só possível com os profissionais valorizados. “Não adianta propaganda se estamos no chão da escola e estamos vendo o que está acontecendo. A propaganda não condiz com a realidade”, assinalou.
“Não estamos pedindo favor. Estamos exigindo nossos direitos. Temos feito uma campanha com respeito, com consciência do nosso papel de educadores. Não vamos aceitar descasos ou desculpas, ausência e omissões. Em um mundo ideal não precisaríamos recorrer a estes meios para que a lei seja respeitada. A propaganda não é mais importante que o aprendizado e a educação”, disse Cíntia.
Ela reiterou que o Sindicato não pode aceitar que aqueles que acolhem, ensinam, limpam, ofertam a merenda, sejam ignorados e esquecidos. “Estamos na luta contra a precarização, por direitos e dignidade. Só com o diálogo e respeito mútuo poderemos avançar na melhoria da qualidade da educação no município”, defendeu.
USO POLÍTICO DA EDUCAÇÃO
A vereadora Professora Cida Lima (PT) também destacou a ausência de representantes no governo da reunião. Ela lembrou que o prefeito Gustavo Nunes (PL) disse em “live” que as reuniões com o SindUTE serão transmitidos em tempo real e ironizou: “Devem estar nos assistindo para aprender, porque vão transmitir as reuniões e isso vai ser bom. A população inteira vai ver como os recursos da educação estão sendo aplicados. Não tem problema nenhum transmitir. Não temos nada a esconder”.
Cida Lima disse que a categoria é muito bem lembrada e pautada nas eleições, mas, uma vez no poder, os governantes se esquecem de seus compromissos. “Nas eleições, estamos em todos os palanques, em propostas muito bonitas, mas depois não somos lembrados”. Ela fez uma retrospectiva das lutas sindicais pela instituição da Lei do Piso e depois pelo seu pagamento, bem como de todas as conquistas alcançadas pelas lutas da categoria.
A vereadora criticou a incapacidade do governo de captar recursos e disse que a administração municipal contrata empresas para isso. Lamentou a sobrecarga de trabalho nas escolas e a evasão de professores, seja por causa da desvalorização ou de problemas de saúde.
Conforme Cida Lima, para além do Plano de Carreira é preciso garantir os reajustes anuais, sob o risco da lei perder o sentido. Ela também reivindicou o pagamento do Piso Salarial e o rateio dos recursos do Fundeb.
DENÚNCIAS DE MALVERSAÇÃO
Coube à vereadora Professora Mariene (Patriota), presidente da Comissão Permanente de Educação, as críticas mais duras ao governo municipal ela falta de políticas públicas para a educação. Ela também denunciou a malversação dos recursos da educação, que, segundo ela, são aplicados de forma “equivocada”.
Ela destacou a ausência do governo na Audiência e lembrou que fez a convocação a vários integrantes da administração, como a Secretaria de Educação, Secretaria de Governo, Secretaria de Planejamento e Procuradoria Geral (Proger). “Eles falam que querem o diálogo, mas quando estamos dispostos a estabelecer o diálogo não há correspondência da fala com a atitude. Deixo aqui minha indignação. Qual o medo de ouvir os educadores, os profissionais da educação? Isto é preocupante. Isto nos tira a paz. Nós precisamos de dignidade e respeito e para isso precisamos de um governo aberto ao diálogo. Esta Audiência é uma prova viva de que o governo não quer conversar com categoria nenhuma”, alfinetou.
FALTA DE DIÁLOGO
A vereadora disse que visitou quase todas a escolas da rede municipal, fez análise de vários contratos e convênios, ofícios, requerimentos e indicações foram feitos ao governo, desde 2021, solicitando que se pague o Piso. “Até hoje não temos Piso nem justificativa convincente de que não tem condições de pagar o Piso. Pedimos clareza na aplicação dos recursos do Fundeb. Infelizmente, nem para sentar e conversar com a educação eles [o governo] abrem a porta”, elencou, afirmando que tampouco o aumento de 6% acompanha a inflação.
ASSISTENTES E SEGURANÇA
Em relação aos assistentes da educação especial e infantil, Mariene disse que ora estão na área pedagógica, ora administrativa, e não têm os 15 dias de recesso a que têm direito. “Ficam com crianças 3 ou 4 violando a lei e quando tem o direito de recesso são colocados no administrativo”, disse, dirigindo-se à Promotora de Justiça, Graciele Rezende, Procuradora da Infância, Juventude e Educação da Comarca de Ipatinga.
A vereadora Professora Mariene lembrou o recente ataque à escola no Paraná, com duas vítimas fatais, para criticar a política de segurança nas escolas da rede municipal de Ipatinga. “O governo fala que mais de 50% das escolas tem vigilância armada. Isto é uma mentira. Das que visitei, a maior parte estava sem vigilância. Qual é a preocupação deste governo com a segurança dos professores, dos estudantes, dos auxiliares, com a comunidade de uma forma geral? Como estão sendo investidos os recursos da educação?”, questionou.
CONTRATOS QUESTIONÁVEIS
Ela denunciou ainda o “uso de milhões de reais em contratações questionáveis”, enquanto durante as visitas que fez as escolas diretores e coordenadores não tinham como atendê-la porque estavam na sala de aula”.
Entre as contratações questionáveis, Mariene cita o aluguel da sede da PMI no bairro Cidade Nobre por R$ 858 mil, dos quais R$ 78 mil mensais, com recursos da educação. “Por que só a Secretaria Municipal de Educação contribui com aluguel se todas as outras funcionam no mesmo local?”, indaga.
LIVROS SOBRE EMPREENDEDORISMO
Ela denuncia a aquisição de livros sobre empreendedorismo e educação financeira no valor de R$ 1 milhão e 800 mil reais. “A temática do empreendedorismo foi instituída em janeiro de 2022 e só compraram os livros em dezembro de 2022. Livros que não são usados e são desnecessários, porque na ‘Escola do Futuro’ não tem oficina específica para empreendedorismo”, afirma.
KITS DE ROBÓTICA
Outro gasto “questionável”, conforme ela, é a compra de kits de robótica. Mariene cita recente matéria jornalística no “Fantástico” para comparar com as aquisições feitas pela Prefeitura de Ipatinga.
“A Prefeitura de Ipatinga comprou o kit de robótica e mecatrônica por quase R$ 4 milhões. Cada kit custa R$ 15.568,80. O Fantástico denunciou que uma empresa vendeu a prefeituras de 46 cidades de Alagoas, os kits de robótica por R$ 14 mil, que haviam sido adquiridos do fabricante por R$ 2.700. Em Ipatinga, o valor foi maior que o denunciado pelo Fantástico. É um recurso que está indo para o ralo”, assinalou.
A vereadora destacou que a compra de kits robótica está sendo questionado em diversas cidades e também tem que ser investigado em Ipatinga. “São muitos milhões indo para o ralo sem saber como está sendo feito. No contrato, a compra não foi realmente paga, mas a Prefeitura recebeu os kits e não mostra que foi pago no Portal da Transparência. Na Escola do Futuro existiam os tais kits PETE”.
RECONHECIMENTO FACIAL
Os gastos com sistemas de reconhecimento facial nas escolas e chamada eletrônica por reconhecimento facial – o Face School, foi outro gasto mereceu a atenção durante a Audiência Pública. Instituído inicialmente em 2020, por R$ 370.625,00, a proposta foi temporariamente suspensa e retomada no ano seguinte (2021) pelo valor de R$ 895.625,00. Em 2023, o contrato passou para R$ 2.012.500. E foi novamente suspenso este ano depois de nunca ter funcionado em nenhuma escola. “E a Prefeitura alega que não tem dinheiro para pagar o Piso e o reajuste dos trabalhadores em educação”, arrematou.
LOUSAS INTERATIVAS
Mariene lembrou ainda que foi aprovado na Câmara de Ipatinga um projeto que autoriza o governo municipal a comprar lousas interativas, cuja manutenção é caríssima. “Enquanto isso, a rede elétrica de várias escolas está destruída, colocando em risco as pessoas e os prédios escolares, os aparelhos de ar condicionado precisando de manutenção”, sinaliza.
CONVÊNIO COM SEBRAE E PEDALADA
Ela criticou ainda os convênios estabelecidos com o Sebrae com recursos Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). A Prefeitura celebrou um convênio em 2022 no valor de R$ 300 mil e outro em 2023 no valor de R$ 450 mil. “A assinatura do convênio nº 19/2022 com o Sebrae, visando implementar o fomento ao empreendedorismo através do projeto de Educação Empreendedora de Ipatinga, no valor de R$ 300 mil foi feita com recurso da fonte 2.174, que é para manutenção do ensino fundamental (Fundeb), em cerca de 30%. “Este gasto equivocado com o recurso do Fundeb não seria uma ‘pedalada’ do governo?”, questiona Mariene.
Ainda sobre a ‘pedalada’ ela disse que várias ações do governo comprometeram a correta aplicação dos recursos do Fundeb em 2022 e abonos foram pagos sem autorização legislativa.
Mariene explica que no final de 2021, o governo percebeu que não iria cumprir com a obrigação de aplicar os recursos do 70% do Fundeb na valorização dos profissionais da educação. Para alcançar o mínimo de 70% foi aprovada a lei municipal nº 301/2021, que instituiu um abono, em caráter excepcional e transitório, no exercício de 2021. Entretanto, o governo fez um decreto dizendo que as pessoas que tivessem contrato até 22 de dezembro receberiam o abono. “Entramos no debate e afirmamos que estava errado. O governo reconheceu o erro. Pagou o rateio em 2022 que era para ter sido pago em 2021 com os valores de 2021, sendo que nem havia sido empenhado. De onde tirou este dinheiro? Tinha que pagar de 2021 com recursos de 2021. Por muito menos, a Dilma sofreu o impeachment”, comparou.
Segundo ela, a Lei foi clara: a medida era transitória e para o exercício de 2021, com a finalidade de atingir a aplicação mínima dos 70% dos recursos destinados à valorização dos profissionais de educação naquele ano. “Ainda assim, o governo editou o Decreto nº 9.941/2022 e fez uma manobra para pagar o abono de 2021 com recursos do Fundeb de 2022. Foram mais de 700 mil reais do Fundeb do ano de 2022 aplicados sem autorização em Lei, que, em tese deveriam ser devolvidos ao Fundo”.
PROJETOS “CASADOS”
Outra denúncia feita pela vereadora diz respeito aos projetos “casados” que o governo envia à Câmara. “Enviam um projeto para os vereadores votarem o aditivo para creches e rede conveniada, aí colocam o Sebrae dentro do projeto. São estratégias feitas constantemente. Isso nos deixa em situação delicada”, salienta, questionando: “Por que tanta falta de transparência na aplicação dos recursos do Fundeb?”
Ela lembra que foi aprovado um projeto criando uma “aba” no Portal da Transparência para facilitar a prestação de contas dos recursos do Fundo. O projeto foi enviado para sanção do governo e retornou à Câmara exatamente com este ponto vetado.
Além disso, “os dados do SIOP (órgão de controle do governo federal) não correspondem com os dados do Portal da Transparência da PMI”.
TEMPO INTEGRAL
A presidente da Comissão Permanente de Educação abordou também a exigência para permanência de alunos na Escola de Tempo Integral e criticou a medida afirmando que nenhuma legislação, em nenhum nível da federação exige isso.
Ela citou o Artigo 208 Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Plano Nacional de Educação, o Plano Municipal de Educação e resoluções do MEC. “Nenhuma destas legislações traz nada que imponha aos pais manterem seus filhos em tempo integral nas escolas. Com qual fundamento legal é imposto aos pais a manutenção dos filhos em tempo integral nas escolas municipais, se assim não desejarem?”
Segundo ela, em algumas destas escolas de tempo integral os alunos e professores tem que conviver com casas de maribondo; em uma delas a coordenação funcionava numa antiga sala de sauna sem ventilação; noutras existem mato, galinhas para matar escorpiões. “As colegas são excelentes, mas o nosso trabalho precisa de uma estrutura que dê dignidade e escola de tempo integral de qualidade. A imposição fere o princípio da gestão democrática. A oferta é obrigatória, mas cabe aos pais escolher se ficam ou não. Se for uma escola em tempo integral de qualidade, os pais vão brigar para colocar os filhos, não precisará impor. É isso que a gente quer”, concluiu.
ENCAMINHAMENTOS
Entre os encaminhamentos da Audiência Pública, estão: estabelecer calendário de negociações periódicas entre administração e sindicato; compromisso da CMI de não votar projetos que usem recursos do Fundeb que não sejam para a valorização profissional; propor a criação de uma comissão permanente de negociação para o Plano de Carreira; que as denúncias feitas na Audiência sejam encaminhadas ao Ministério Público; e a realização da Conferência Municipal de Educação.