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“A gente não consegue nem se sentir feliz por ter sobrevivido”

Mariana Magalhães é estudante do quarto ano do curso de relações públicas da Universidade Federal de Santa Maria (Crédito: Wilson Dias/ABr)

SANTA MARIA (RS) – Mariana Magalhães, de 24 anos, estudante do quarto ano do curso de relações públicas da Universidade Federal de Santa Maria, foi uma das sobreviventes do incêndio da Boate Kiss. Perdeu muitos amigos, e quando falou com a reportagem, já havia ido a 15 velórios.

Nos trechos a seguir, ela conta que conseguiu sair sem ferimentos e levar consigo cinco pessoas. Mesmo assim, sente-se culpada: “Cinco pessoas cabem em uma mão”, disse. “A gente não consegue nem se sentir feliz por ter sobrevivido porque há mães que não vão abraçar seu filho, a minha mãe está me abraçando, mas ao mesmo tempo me senti feliz e culpada”, acrescenta. Mariana estava trabalhando de fotógrafa na festa.

AGÊNCIA BRASILComo o fogo começou?
MARIANA MAGALHÃES – Eu estava na frente do palco. Eu não vi quando começou o fogo. Só vi quando já tinha fogo no teto. Aí eu vi que o vocalista estava tentando usar o extintor e não estava funcionando ou ele não estava conseguindo utilizar. Eu não sei como é que funciona o extintor, não sei se eu saberia usar. Não quer dizer que o extintor não estivesse funcionando. O que eu sei é que ele não foi utilizado.

ABr – Como você conseguiu escapar?
MM –
Depois de ver o fogo, eu não esperei muito mais tempo para começar a correr e gritar. Saí correndo e gritando e ainda não tinha um fogo, assim, preocupante. Até confesso que achei que estava fazendo um fiasco, não imaginei que ia acontecer o que aconteceu. Mas, mesmo assim, alguma coisa me disse: ‘saia correndo e gritando’. Saí e consegui tirar só cinco amigos junto comigo. Quando a gente olhou para trás, foi muito rápido. Não demorei dez segundos para atravessar a boate correndo. Quando a gente olhou para trás, a fumaça já tinha tomado conta e saía só gente agachada, vomitando, com convulsão. Fui muito rápido, isso que é o mais apavorante.

ABr – Houve correria?
MM
– Não tinha correria quando eu saí, o pessoal não estava nem acreditando em mim. Quando a gente deu por si, foi ver o que aconteceu, a gente olhou para trás, só saía fumaça pelas portas, fumaça, fumaça. E era uma fumaça muito preta, você não enxergava nada. As pessoas estavam pretas, não queimadas, mas a fumaça era parecida com toner [material usado em máquinas impressoras], parecia que as pessoas tinham tomado banho de toner, eu não consegui nem identificar direito os amigos que estavam saindo.

ABr – Você tentou voltar?
MM
– Eu até fui muito consciente disso, porque eu sei que se eu voltasse, eu talvez eu não conseguisse sair [novamente]. Infelizmente, a gente não tem como [retirar todas as pessoas]. Deixa para os bombeiros agora, com equipamentos, retirar o resto do pessoal. Um dos meus amigos queria voltar. Eu tive que agarrar ele à força contra uma grade. Teve muita gente que voltou para ajudar, que aparentemente estava bem, mas que veio a morrer agora.

ABr – As pessoas não se deram conta da gravidade do incêndio?
MM –
Ninguém tinha ideia da gravidade, não era uma fumaça normal, isolamento acústico é todo de isopor. Isopor é a coisa mais tóxica que pode pegar fogo. Esse inimigo foi muito silencioso. As pessoas saíam bem, andando, daqui a pouco começavam a cair, a ter convulsões, a vomitar e apagavam na sua frente. Um sentimento de impotência, de não poder fazer nada, não tinha o que fazer. A gente saiu e ficou ali olhando se poderia ajudar alguém, tentou carregar, eu tentava pensar assim: ‘poderia levar no meu carro’. Mas, perdi a bolsa com a chave do carro, então eu não podia nem sair com o meu carro dali para levar alguém ao hospital.

ABr – Houve bloqueio nas portas?
MM
– Quando eu saí, eu não fui barrada. Eu sei que tem gente que disse que foi barrada pelos seguranças. Quando eu saí, a porta estava aberta. São duas portas, uma entrada e uma saída, eu saí pela entrada, que tem um corrimão de ferro por dentro.

ABr – Você chegou a passar mal?
MM –
Eu não senti respirar fumaça, mas estava mastigando fuligem. Eu já fui ao hospital, a médica perguntou se eu respirei fumaça, eu disse: ‘respirar não sei, mas mastiguei fuligem. Sentia nos dentes.’

ABr – Pensaram que você tinha morrido?
MM –
Fiquei sabendo disso primeiro no Facebook, do pessoal pensando que eu tinha morrido, porque tinham achado minha bolsa e meus documentos. Daí eu disse: ‘tô bem, vou lá me apresentar, para que eles não fiquem procurando mais um corpo dono dos documentos perdidos’. Depois um amigo da minha avó me ligou dizendo que tinha encontrado minha bolsa, e tava apavorado, achando que eu tinha morrido.

ABr – Como está sentindo hoje?
MM
– O João, dono do site em que eu trabalhava, morreu. Sei que foi uma grande perda. É uma situação assim que tu não sabes nem como que você vai sofrer. É tanta gente, você vai a cada velório, é uma situação diferente, é uma familiar diferente, há família que perdeu os dois únicos filhos. A gente não consegue nem se sentir feliz por ter sobrevivido porque tem mães que não vão abraçar o seu filho, a minha mãe está me abraçando, ao mesmo tempo me senti feliz e culpada.

ABr – Você ajudou na identificação?
MM
– Fui voluntária para ajudar a identificar os corpos. Minha mãe disse: ‘não vai’. E eu respondi: ‘Mãe agora não tem nada a ver. A pessoa está morta’. O problema foi o monte de gente morrendo aos seus pés, e você não conseguir fazer nada. Porque, no caso, nem a massagem cardíaca que a gente fazia, resolvia, porque estavam intoxicados, então, não é uma coisa que vai reanimar. Tanto que está tendo reflexo agora. Amigos que saíram bem, que a gente se sentiu aliviado de ver, [morreram]. Eu dei um abraço em um amigo. Logo depois, ele deu entrada em um hospital e morreu.

ABr – Como é a situação das outras boates da cidade?
MM –
A Kiss foi a melhor boate da cidade para ter pegado fogo. Deus me perdoe, claro que a gente não queria que nada tivesse acontecido. Mas tem outras em que seria muito pior. Tem uma outra boate universitária que seria impossível, teria morrido todo mundo. Não teria como ninguém sobreviver.


Após incêndio, 118 pacientes continuam internados no RS
Santa Maria (RS) –
Cerca de 55 horas após o incêndio na Boate Kiss que deixou 234 mortos, 118 pacientes continuam internados em Santa Maria ou na capital do estado, Porto Alegre, até as 20 horas de ontem. Desses, 20 estão com queimaduras graves e compõem um grupo de 75 pessoas que estão em estado crítico, com risco de morte.

O número de internados com problemas menos graves, no entanto, diminuiu e seis pessoas receberam alta. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e a Secretaria de Saúde do município de Santa Maria dão atenção especial aos pacientes que ainda correm o risco de morrer, mas comemoram que nenhum novo caso de morte tenha sido registrado entre os feridos após o incêndio.

“Nós temos 75 pacientes que estão em estado crítico, precisam de atenção e podem vir a óbito. Mas, em uma tragédia como essa, conseguir 54 horas sem mortes é muito bom, muito importante”, disse o ministro ontem pela manhã (29).
As autoridades de saúde mantêm a prática de transferir os pacientes de Santa Maria para Porto Alegre, de modo a garantir reserva de vagas para novos casos de pneumonite química que possam surgir. Segundo o ministro, até seis dias após inalar a fumaça tóxica do incêndio as pessoas podem apresentar sintomas como falta de ar, cansaço e tosse que tendem a evoluir de forma rápida para insuficiência respiratória.

Um comitê de gerenciamento de crise foi montado no Hospital Caridade, em Santa Maria, para monitorar os pacientes que correm risco de morte e os novos casos de pneumonite que surgirem. Além disso, o comitê, que é formado por médicos e autoridades de saúde, também está atuando para oferecer atenção às famílias das pessoas que morreram no incêndio.

Padilha seguiu ontem para Porto Alegre para acompanhar a situação dos pacientes internados na capital, mas retornaria à tarde para Santa Maria. Ainda não há previsão para que o ministro deixe o Rio Grande do Sul.

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