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Massacre do Carandiru faz 20 anos, sem punições

Os 90 mil metros quadrados que serviam de sede ao complexo penitenciário do Carandiru, após a demolição, deram lugar a um parque    (Crédito: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress)

SÃO PAULO – Na tarde de 2 de outubro de 1992, por volta das 14h, a dois dias das eleições municipais, dois detentos brigam no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, um complexo penitenciário construído nos anos 20 no bairro do Carandiru, na zona norte de São Paulo.
Foi o estopim de uma tragédia que deixou 111 detentos mortos, resultado da invasão da Polícia Militar (PM) que aconteceria pouco depois, e que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru.
O complexo era formado por sete pavilhões, cada um deles com cinco andares. Na época, 7.257 presos viviam no Carandiru, 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão. Em 2002, teve início o processo de demolição do complexo penitenciário. Hoje o local abriga o Parque da Juventude.
A briga se generaliza, começa uma confusão e os funcionários do complexo tentam acalmar os ânimos dos detentos e recolhê-los às celas.
“As pessoas se amotinaram, se aglomeraram, os agentes penitenciários ficaram em pânico, evadiram-se do pavilhão e começou aquela gritaria de que havia se iniciado uma rebelião”, contou à Agência Brasil o pastor evangélico Sidney Francisco Sales, 45 anos, ex-detento do Pavilhão 9 e que atualmente cuida de três abrigos.
Sales estava em sua cela, no quinto andar, quando os policiais chegaram ao Carandiru para conter a rebelião. Uma tentativa de negociação com os detentos falhou.
“Passava das 3 da tarde quando a PM invadiu o Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”, narra o médico Drauzio Varela em seu livro Estação Carandiru.
Drauzio fazia um trabalho de prevenção à aids no complexo e conta ter escrito o livro baseado nos relatos dos presos. Cerca de meia hora depois da entrada da PM, “as metralhadoras silenciaram”, contou o médico. Nesse dia, 111 detentos morreram, 84 deles presos ainda não condenados.
Em 2000, um documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), após petição impetrada pelas organizações Americas Human Rights Watch, Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e Comissão Teotônio Vilela, considerou a ação policial no Carandiru “um massacre”.

Réus serão julgados no ano que vem
Passados 20 anos, apenas uma pessoa foi condenada e, mais tarde, absolvida, pelo Massacre do Carandiru. O único acusado pelos resultados da tragédia que foi julgado até agora, coronel Ubiratan Guimarães, o comandante da Polícia Militar à época, foi inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em fevereiro de 2006. O militar foi assassinado em setembro do mesmo ano, em crime do qual é acusada a então namorada.
Em 2001, o coronel Ubiratan, como era conhecido, tinha sido condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 prisioneiros que foram vitimados na invasão do complexo penitenciário do Carandiru.
Em setembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou recurso de defesa e decidiu manter a decisão de levar a júri popular mais de 75 policiais acusados pelo massacre. Na última quinta-feira (27), o juiz José Augusto Nardy Marzagão, da Vara do Júri de Santana, decidiu levar 28 desses policiais a júri popular que marcou para o dia 28 de janeiro do próximo ano. O processo será julgado em etapas, devido ao grande número de réus envolvidos.
Para Rodolfo Valente, advogado da Pastoral Carcerária em São Paulo, o governador de São Paulo na época, Luiz Antonio Fleury Filho, e o então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, também deveriam ser responsabilizados pelo massacre.
“Entendemos que o governador Fleury e também o secretário Campos deveriam estar no banco dos réus. Não adianta só responsabilizar os policiais que participaram da ação”, falou ele, em entrevista à Agência Brasil.



“Nunca vi algo tão desumano”, relembra perito
São Paulo
– Naquele 2 de outubro de 1992, uma sexta-feira, quando foi chamado para fazer a perícia no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, o perito Osvaldo Negrini Neto achou que se tratava de um evento de resistência seguida de morte, ou seja, que os detentos haviam morrido em decorrência de confronto com a Polícia Militar, mas logo mudou de ideia.
“Depois percebi que foi um massacre seguido de muitas mortes”, disse o ex-perito, em entrevista à Agência Brasil. Na época, contou, era perito de uma seção especial do Instituto de Criminalística (IC) de São Paulo que analisava exatamente os casos de resistência seguida de morte. Após o episódio, chegou a sofrer ameaças.
O que o levou a classificar o episódio como um massacre estava, segundo ele, “escrito nas paredes” do Pavilhão 9. “Todas as celas que eu examinei tinham muito poucos tiros nos corredores. No corredor, eu contava dois ou três buracos de balas. Mais de 90% dos tiros estavam dentro das celas. E sempre da porta para o fundo, ou seja, impossível que tenha sido algum tiro dado pelos presos em direção aos policiais militares. E, realmente, não tinha nenhum policial ferido por balas.”
Negrini Neto foi o autor do principal laudo sobre a morte dos presos no Carandiru.
Aposentado desde 2010, ele conversou com a Agência Brasil por telefone.
“Colhi material das paredes e vi que, em muitos casos, não era bala de revólver, mas de metralhadora. Os tiros seguiam uma sequência quase na mesma linha. Uma pistola e um revólver não fazem isso”.
O perito descreve a situação de um dos andares mais atingidos: “No terceiro, a coisa estava bárbara. Na primeira cela em que entrei, tinha mais de 20 buracos de bala. Na outra, 15, na outra, dez. Fui contando e havia mais de 450 buracos de bala na parede. Em alguns, tinha [marca] no chão como se tivesse matado gente que estivesse sentada ou ajoelhada”, descreveu.
“Quando cheguei à borda do primeiro pavimento, vi uma cena dantesca, algo que nunca tinha visto na minha vida. Um monte de cadáveres empilhados, um por cima do outro, todos completamente destroçados, com buracos de balas aos montes”, disse.
Depois disso, teve início o trabalho de retirada dos corpos. “Para isso, eles precisaram encostar quatro ou cinco caminhões-baú do presídio e os próprios presos foram obrigados a pegar os cadáveres, um por um, no primeiro pavimento, e trazer, de dois em dois, para botar no caminhão. Aí, vi que todos os presos estavam completamente nus”, descreveu.
Segundo o ex-perito, os sobreviventes do Pavilhão 9, que eram mais de 1,8 mil na época, estavam todos sentados no pátio, nus, ajoelhados, cercados por policiais. “Nunca vi algo tão desumano na minha vida”, disse o perito. Os corpos precisaram ser levados para vários institutos médico-legais de São Paulo e da região metropolitana.

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