FOTO: Os teatros foram os primeiros a fechar as cortinas e serão os últimos a reabrir, mas a criatividade artística ajuda a construir alternativas
Em verdadeiros atos de resistência, longe dos palcos e do público, setor cultural de Ipatinga luta para sobreviver e se reinventa em plataformas digitais
(DA REDAÇÃO) – A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus atingiu o setor cultural de forma dramática – lamentavelmente não é um teatro, uma ficção. Como as artes se manifestam em sua melhor forma e intensidade em aglomerações, no contato com o público nos bares, teatros, museus, pinacotecas, shows, nos lançamentos literários e saraus, e a principal forma de disseminação do vírus é o contato entre as pessoas, foi na cultura onde as cortinas se fecharam primeiro e, certamente, será onde mais demorará para ser reaberta. Esta afirmação é repetida como um mantra para os agentes e produtores de cultura, que vivem uma difícil realidade em tempos de isolamento social.
Além de colocar os agentes culturais em situação de vulnerabilidade, a própria cultura “derreteu” com a pandemia. As produções teatrais foram paralisadas, deixando sem trabalho atores, produtores, figurinistas. Os bares fecharam e os músicos tiveram que se reinventar nas lives e outras formas de comunicação digital, assim como grupos de dança, teatro e circo.
Em Ipatinga é difícil avaliar a quantidade de artistas que vivem em situação de dificuldade, mas não são poucos. O Departamento de Cultura ainda não possui um mapeamento da quantidade de artistas existentes nos diversos setores, grupos de teatro, artesões, etc; mas sabe-se que nem quantos estão em situação de vulnerabilidade. A última avaliação é feita pela ação de distribuição de cestas básicas, quando cerca de 150 pessoas se cadastraram para receber as 300 cestas disponibilizadas pela Usiminas e Prefeitura – a mais visível ação de socorro ao setor cultural, além da Lei Aldir Blanc em tramitação no Congresso e alguns editais abertos em nível estadual. O Departamento de Cultura explica que a dificuldade em mapear e cadastrar os agentes culturais se deve em parte à volatilidade do setor, migração de artistas, fechamento de grupos e abertura de outros novos. No caso das cestas, muitos não sentiram necessidade de recorrer à ajuda emergencial ou preferiram deixar para outros em situação mais vulnerável. Mas o fato é que o setor sofreu um pesado baque.
PANDEMIA E CENSURA
A produtora Marilda Lyra afirma que as dificuldades do setor cultural nesse momento, assim como em outros segmentos, são enormes. “O setor foi o primeiro a parar e com certeza será o último a reabrir. Já vínhamos passando por um período muito crítico, com toda a campanha de discriminação do artista e das leis de incentivo, o que fez com que empresas deixassem de patrocinar projetos que eram desenvolvidos há anos”, destaca Marilda Lyra.
“Agora – prossegue ela –, com tudo isso que estamos vivendo, o quadro se agrava mais ainda. Toda a cadeia produtiva, que gera milhões de empregos país afora, está paralisada. Falamos aqui do artista de um modo geral, técnicos, produtores, motoristas, seguranças, faxineiros, etc. Quanto as ações emergenciais estão sendo tomadas pelos governos, estadual e federal, ainda não sabemos como estas medidas vão acontecer e como os profissionais do setor serão beneficiados. Mas só isso não vai resolver. Temos que pensar no pós pandemia. Isso porque dependemos do mercado para que o setor retome suas atividades e uma recessão econômica é inevitável. Ela já está aí. Estamos num momento muito incerto. O setor cultural com certeza terá que se reestruturar e encontrar novas formas de levar seu produto, a arte, para o público consumidor.
Marilda salienta ainda que a área cultural do Vale do Aço está se reunindo desde a semana passada, já pensando em tudo isso. “Um novo secretário de cultura assumiu o cargo mês passado, no Governo de Minas, e enviamos uma carta dando boas vindas e cobrando um posicionamento sobre ações emergenciais para o setor”, adianta.
REINVENÇÃO
Integrante do grupo Hibridus e do Conselho Estadual de Cultura, Wenderson Godoi, conta que seu grupo já tinha feito a captação de recursos aprovados pela Lei de Incentivo à Cultura para a realização da 14ª edição do Encontro Nacional de Dança Contemporânea de Ipatinga (Enarteci), que teve que ser cancelado. “Conversamos com os patrocinadores e o governo do Estado e fizemos uma convocatória para a ajuda emergencial para os artistas do Vale do Aço, que não estava prevista no projeto original. “A gente recebeu 86 inscrições em diversas áreas. Selecionamos 20 projetos, entre eles dança, teatro, circo, música e demos uma ajuda de R$ 500 para cada e já fizemos o pagamentos no início da convocatória. Estes artistas geraram conteúdos para as plataformas digitais e os vídeos de foram disponibilizados no youtube, seguidos de um bate-papo,através de lives no instagram”, diz Wenderson Godoi.
“ARTISTA É TECNÓFOBICO”
Ele lembra que o setor cultural é essencialmente aglomerador de pessoas. “Num teatro o sinônimo de sucesso é casa cheia, sobretudo, nas artes cênicas e na música. Os grandes cantores de música sertaneja e o sertanejo universitário foram os primeiros para acordar para esta nova realidade. Eles estão fazendo live desde a primeira semana da pandemia, com 3 milhões de visualizações e conseguem monetizar, coisa que os ‘pequenos’ artistas ainda não conseguem fazer. Acho que o artista é tecnófobico. Dos 86 inscritos muitos não tinham canal no youtube em pleno 2020. A pandemia fez a gente acordar para outra plataformas, para outra formas de existir no mundo com arte. O Glauber Campos é um cantor de barzinho e foi um dos selecionados. Ele criou o canal no youtube para participar da convocatória, agora pode fazer live. Quem o via e ouvia no barzinho agora pode ver de casa. Não é mesma coisa, não tem a mesma troca, mas em momento de pandemia é uma das alternativas. Nós fomos os primeiros a parar (antes da pandemia o teatro Zélia Olguin e Centro Cultural Usiminas já tinham fechado) e nós vamos ser os últimos a voltar, com certeza. Os espaços de aglomerações (teatros, museus, galerias) só vão voltar quando pandemia passar”.
EM BUSCA DA SOBREVIVÊNCIA
Wenderson também lembrou a articulação entre produtores culturais citada por Marilda Lyra, sublinhando que os artistas regionais estão buscando se organizar enquanto classe e discutindo como vão continuar existindo daqui para a frente. Destacou ainda a doação de 300 cestas básicas pela Prefeitura e Usiminas em caráter emergencial para os artistas em situação de vulnerabilidade. “No município foi a única medida adotada. O Estado lançou um edital (Arte Salva, ver em: http://www.cultura.mg.gov.br/component/gmg/story/5618-edital-arte-salva-da-secult-vai-destinar-r-2-5-milhoes-para-a-execucao-de-projetos-artisticos-e-culturais) para 1.315 projetos de uma ajuda de R$ 1.900 para a produção de conteúdo digital”, enumera, acrescentando a aprovação a Lei Aldir Blanc na Câmara dos Deputados. “[A Lei Aldir Blanc] É interessante, exatamente porque é um músico super importante que morreu vítima da covid-19. Agora, a lei vai passar pelo Senado, mas o presidente tem poder de veto. Estamos fazendo uma campanha nacional para que os senadores aprovem e o presidente não vete. Este recurso não é dinheiro de respiradores. É verba carimbada, que está depositada no Fundo de Cultura e só pode ser gasto neste setor, no amparo a artistas e espaços culturais. A Lei Aldir Blanc é uma conquista da classe”, ressalta, destacando o papel das parlamentares Jandira Feghali e Benedita da Silva na defesa do projeto.
PANDEMIA E CENSURA
Wenderson critica a intensa campanha contra os artistas feita pela atual governo e seus seguidores. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro e seus apoiadores tentaram desconstruir a arte e os artistas com discursos distorcidos e falsos, colocando-os como sanguessugas do Estado, pessoas que “mamam” nas tetas da Lei Rounet, além de incentivar a perseguição e a censura de peças teatrais, exposições e outras manifestações culturais.
“O Brasil tomou ranço da cultura. Mas quem aguenta ficar dentro de casa, no isolamento, como agora, sem cultura e arte? O número de visualização das séries da Netflix é absurdo, as lives e a música estão no dia a dia das pessoas. É a arte e a cultura que está nos fazendo passar por este momento de pandemia de forma mais leve”, diz.
Entre as ações em defesa do setor cultural além da distribuição emergencial de cestas, do edital do governo estadual e da Lei Aldir Blanc, ele relaciona o projeto Movimento de Espaços de Teatro, Dança e Circo de Minas Gerais (Meta), que tem o objetivo de preservar os espaços para que venham a fechar. “Não há sociedade sem arte”, sentencia.
O DEPOIS
Quanto à sobrevivência do setor cultural no pós-pandemia ou após o achatamento da curva de contaminação, Wenderson avalia que o vírus veio para ficar e até que se descubra uma vacina em um ano, um ano e meio é preciso se acostumar à idéia do isolamento e se adaptar a ela. Um dos exemplos que ele cita, de como sobreviver no pós pandemia é a experiência da Berliner Ensemble, companhia de teatro alemão fundada por Bertold Brecht, que mudou a configuração do teatro. “Eles tiraram mais da metade das poltronas do teatro, ampliando o distanciamento entre as pessoas”, exemplifica. “É isso. A gente tem que repensar. Nós, brasileiros, que gostamos do afeto, do abraço, se queremos que os entes queridos fiquem vivos juntos com a gente, vamos ter que mudar”, arrematou.
SEM PREVISÃO
O ator e produtor Othon Valgas, do grupo Santinhas do Pau Oco, diz que “os artistas que sobrevivem única e exclusivamente de bilheteria como nós, talvez seja a classe menos assistida”. E repete o bordão: “Fomos os primeiros a parar e certamente os últimos a retornar. Já não trabalhamos com patrocínio. Toda a nossa renda deriva da bilheteria. Nosso maior carro chefe, por exemplo, o espetáculo Santinhas do Pau Oco foi interrompido no meio de uma turnê. Então, a situação não é das melhores. E por mais que possamos supor uma melhora ou retomada das atividades ninguém pode prever nada. Estamos todos na eminência dos auxílios culturais, como o auxílio emergencial aguardando a aprovação no Senado”, aposta.
CANCELADO
O ator e produtor Ederson Caldas, fundador e organizador do Cinedocumenta também teve suas atividades paralisadas. Em isolamento num sítio em Esmeraldas, Ferros, ele conta que seus projetos para este ano foram atingidos em cheio pela pandemia.
Ederson conta que além da 14ª edição do Cinedocumenta, prevista para este ano, estava ensaiando o monólogo “Adelaide sem Censura” para estrear em 1º de abril. Ambos os projetos foram cancelados. Os planos de uma viagem a Londres onde iria encenar o monólogo também foram por água abaixo. “A reserva que estava investindo nesta produção que foi interrompida é a que estou usando para me manter e pretendo fazer esta viagem para reerguer a minha economia. Mas não sei se a rainha Elizabeth vai deixar entrar”, brinca, comparando um eventual bloqueio da Comunidade Européia aos vôos originários do Brasil, a exemplo dos EUA.
“Eu estava ensaiando o primeiro monólogo para estrear no 1º de abril e não consegui por causa da pandemia do coronavírus. A minha a produção foi interrompida e estou com passagem comprada para Londres em 6 de julho onde ficaria 5 meses com tudo esquematizado. No Brasil, o espetáculo iria circular em maio e junho, aí faria a viagem para Londres . De volta, iria estrear em BH no início de 2001. Com isso tudo, os planos, além da estréia, foram adiados. Ainda não cancelei a passagem, mas possivelmente não a farei este ano. Meus planos culturais para 2020 foram todos adiados para 2021”, lamenta.
ADELAIDE
Umbilicalmente ligado ao cinema, Ederson Caldas reconhece o papel de novas mídias em tempo de crise, mas parafraseia o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, homenageado na edição “Viva o Povo Brasileiro” do Cinedocumenta, para quem “documentário é muito chato”.
“Para fazer teatro filmado tem que ter referência de Peter Brook porque é, muito chato”, diz remetendo ao diretor de teatro e cinema britânico que propõe a substituição da passividade do espectador pela sua participação no espetáculo. Caldas abre um o parênteses para falar sobre o monólogo que está ensaiando, pela sua relação com os tempos atuais: “Adelaide sem Censura” é uma livre adaptação do texto original A Rainha do Rádio, escrito em plena ditadura, na década de 70, que conta a história de Adelaide, uma radialista solteira, com mais de 40 anos, que tinha um programa de poesia numa rádio do interior. Durante 25 anos ela manteve o programa de poesia no ar, quando de repente recebe a notícia de que foi demitida por corte de pessoal por causa da reforma da previdência. Outro argumento era a falência da poesia. A poesia morreu e por isso foi demitida. Mas Adelaide não aceita a demissão e entra no ar revoltadíssima à meia noite, quando podia falar palavras obscenas e soltar o verbo, ao contrário do horário anterior de meio dia. Como ela era da imprensa sabia os podres dos poderosos da cidade, prefeito, vereador, gerente do banco, e começa a divulgar todos eles no ar. Inclusive, o seu próprio, o maior de todos, razão pela qual foi demitida: porque tinha um caso com o rapaz de 16 anos. ‘Eu não fui demitida porque a poesia morreu, mas por causa do Vladmir’ diz a personagem, revelando seu caso com o jovem. ‘A sociedade subestima os jovens de 16 anos, pensam que são anjos puros, mas é só procurar no tinder. Está cheio de garotos de 16 anos’, escandaliza.
CINEDOCUMENTA
Ederson Caldas destaca ainda o projeto do Cinedocumenta que é realizado há 14 anos e se consolidou como um dos principais festivais de cinema documentário em Minas Gerais. “Não tem nenhuma perspectiva para este ano. Ainda não consegui captar nenhum recurso para o festival, que está aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura. Não tem como fazer o festival, que em 2020 entraria na 14ª edição e já é consolidado na região, mas não dá para fazer sem patrocínio. O cinema também está sem nenhum perspectiva.
Ederson fala sobre a Lei Emergencial da Cultura que foi aprovada na Câmara e segue para o Senado, mas diz não saber para que fins a verba será destinada. “A situação emergencial para os artistas e produtores, atores, é complicada. Não temos condições de levantar uma produção neste momento. A outra questão é a manutenção de espaços que é uma forma de manter vivo os grupos”, diz na esperança de que a nova lei beneficie o setor neste aspecto.
CINEMA INTERROMPIDO
Ederson Caldas também fala da interrupção da produção do cinema nacional, que já vinha sendo paralisada pelo preconceito, censura e falta de políticas do governo federal para o setor, revelado pelo desmonte da Agência Nacional do Cinema (Ancine). O que também prejudica toda a cadeia do áudio-visual.
“Anteriormente a 2018 vencemos os festival de Cannes, Berlim, o filme ‘Bacurau’ foi um estouro. O Cacá Diegues, um dos principais cineastas brasileiros, está perplexo com esta situação. Em 2019, no cinema brasileiro não teve praticamente nenhuma produção. Sou amigo da produtora dos filmes de Selton Melo, ela me disse que este ano não teve até agora nenhum recurso para finalização ou desenvolvimento de roteiro. O áudio visual está completamente destroçado. Em Minas a Cinedocumenta venceu o prêmio do único edital de 2019, no valor de 90 mil para festivais com mais de 3 edições. Em 2018 já estava em consulta pública para lançar a 2ª edição do prêmio, que foi interrompido. A última mostra Cinemadocumenta foi feita com este prêmio do programa do áudio visual mineiro, Exibe Minas, é o nome do edital, que parou também. O edital não foi publicado e a Secretaria do Audiovisual de Minas não tocou mais no assunto. Estamos com o setor do áudio mineiro completamente paralisado. O filme ‘Vaga Carne’, da Grace Passô foi lançado on line, por causa do fechamento de salas no momento. O áudio está uma catástrofe”, conclui.
Apesar do cenário desfavorável Ederson mantém seus planos para o próximo ano e diz que pretende estrear “Adelaide sem Censura” no dia 1º abril de 2021 no teatro Zélia Olguin, no Cariru.
Ele avalia ainda que, no teatro, a tendência é aposta no monólogo. “Nem sempre porque a produção é mais barata, mas por ter um só ator em cena, embora continue necessitando de cenógrafo, iluminador, operador de som, camareiro, chefe de palco, produtora. Então acaba que é necessário uma equipe tem 10 pessoas, mas um só ator, o que facilita muito”, destaca.