Cidades

Bacia do Rio Doce vive lenta agonia no trecho que banha o Vale do Aço

Trabalhadores que dependem do rio, os “boteiros” conhecem bem a realidade e a veem minguar dia a dia

IPATINGA – O arquiteto e urbanista José Ângelo Paganini, especialista em engenharia sanitária e ambiental, em entrevista ao “Diário Popular” fez uma avaliação da atual situação do rio Doce. O rio, um dos principais cursos d’água de Minas Gerais e Espírito Santo, vive sua pior crise hídrica e no trecho da foz em Regência (ES) já não se encontra mais como mar, provocando sofrimento para comunidades ribeirinhas e de pescadores.

Em sua passagem pela região do Vale do Aço e Rio Doce, vários trechos estão assoreados, com grandes bancos de areia. Paganini que também é conselheiro dos Comitês da Bacia do Rio Piracicaba e Doce, diretor da Fundação Relictos, membro do Conselho de Política Ambiental (Copam) e Conselho Estadual de Recursos Hídricos avalia que é preciso uma rápida mudança de consciência dos usuários. Entre outros fatores que causam a morte do rio, Paganini aponta que “a ocupação com pecuária intensiva conseguiu em pouco tempo transformar uma rica e produtiva Floresta Atlântica em pastagens degradadas, que caminham aceleradamente para o estágio de desertificação”.

DIÁRIO POPULAR – O rio Doce praticamente já não chega mais ao mar em sua foz em Regência (ES). Esta é uma situação sazonal provocada pela estiagem ou é resultado da degradação que o rio vive ao longo dos anos?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI – Os dois questionamentos são verdadeiros. A situação de escassez hídrica vivida pelo rio Doce, bem como pela região sudeste do pais é provocada pelas mudanças climáticas. Essas mudanças no clima, agravadas pelo aumento dos gases do efeito estufa, provocaram a diminuição das precipitações pluviométricas ao longo do tempo na bacia do rio Doce. No último ano hidrológico choveu cerca de 40 % a menos que o normal observado. O outro fator é a degradação ambiental da Bacia. A ocupação com pecuária intensiva conseguiu em pouco tempo transformar uma rica e produtiva Floresta Atlântica em pastagens degradadas, que caminham aceleradamente para o estágio de desertificação. A camada de solo produtivo é arrastada para os cursos d’água provocando o seu assoreamento. Por outro lado a retirada da cobertura vegetal das áreas de recarga dos lençóis freáticos impede a infiltração das águas da chuva no solo, desta forma alterando o volume de vazão ou mesmo secando as nascentes que alimentam nossos rios.

DIÁRIO POPULAR – Em contato com “boteiros” que fazem a travessia do rio Doce entre Ipaba e Ipabinha, aqui na região, as informações são de que o rio também está bastante assoreado e a cada ano diminui o volume d’água. Isso é uma realidade irreversível ?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI
– Sim, a observação efetuado por usuários do rio, confirmam os dados de monitoramento disponíveis. O assoreamento dos cursos d’água aumenta dia a dia. Bancos de areia são visíveis ao longo dos cursos d’água.Dados disponibilizados por Relatórios da CPRM – Serviço Geológico do Brasil informam que com base nos dos dados de precipitação verifica-se que:
. Em todas as bacias, o total de precipitação acumulado atual é menor do que 87% da média histórica, sendo que nas bacias dos rios Doce, Itapemirim, calha do São Francisco, das Velhas e Verde Grande é menor do que 60%.
. As precipitações verificadas até 24 de junho de 2015 foram inferiores a 50mm nas áreas de drenagem das estações indicadoras.
. Por mais que tenha chovido acima da média em diversas localidades no mês de junho, em valores absolutos a quantidade é baixa, influenciando pouco o aumento das vazões nos cursos d’água.

DIÁRIO POPULAR –
O que pode ser feito para garantir a preservação do rio Doce e demais cursos d’água, como o Piracicaba e o Ipanema, seus afluentes, por parte da população e do poder público ?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI – É necessário aumentar a infiltração de água da chuva no solo para a recarga do lençol freático que armazena a água de chuva e a libera paulatinamente para os cursos d’água. Isso se faz com o uso correto do solo urbano e rural. Deve-se observar e cumprir rigorosamente o Código Florestal Brasileiro. O código foi recentemente mutilado e flexibilizado para agradar ao agro negocio, mesmo assim não tem sido observado. É necessário recompor a cobertura florestal do território nas áreas de Mata Ciliar, Topo de Morros e de Reservas Legais. As nascentes precisam ser cercadas e protegidas. O estado precisa fortalecer o Sistema Ambiental elaborando licenciamentos ambientais de empreendimentos degradadores e ou utilizadores de recursos naturais corretos e eficazes. A Fiscalização Ambiental também precisa acontecer com equipes motivadas e capacitadas.

DIÁRIO POPULAR – Volta e meia a mortandade de peixes no rio Doce e Piracicaba revela que as empresas da região ainda lançam dejetos que podem prejudicar muito estes cursos d’água. Além dos danos à fauna e flora aquática, a qualidade da água para consumo também pode ficar comprometida. Em que as empresas podem contribuir para melhorar a qualidade da água, reduzir o desperdício e manter o nível dos rios?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI – Nos últimos anos a fiscalização do estado sobre as empresas foi grande. Essa fiscalização levou as grandes empresas efetuarem melhorias e a instalação de equipamentos para o controle da poluição. A implantação da cobrança pelo uso da água na Bacia do Doce e os custos para capitação e tratamento levaram, as empresas aumentar a reutilização de água em seus processos industriais. Essas melhorias ambientais precisam ser aprimoradas, melhoria continua é sinônimo de boa gestão. Empresas médias e pequenas precisam ser fiscalizadas pois a contribuição de todas para a poluição do rio é bastante significativa.
Por outro lado as Empresas do Poder Publico e os Municípios não cumpriram seu dever e os esgotos sanitários das diversas cidades são despejados “ in natura” nos rios. Poucas cidades na Bacia tratam seus esgotos e onde são tratados a remoção de poluentes é limitada, o tratamento efetuado é somente o Primário.
Os padrões ambientais para lançamento de poluentes nos cursos d’água precisam ser aprimorados, os existentes são antigos e estão defasados. A rede de monitoramento da qualidade da água e a fiscalização precisa ser ampliada.

DIÁRIO POPULAR – Qual a sua avaliação sobre o futuro das nossas reservas aqüíferas (em Minas e no Vale do Aço, para ficar num universo mais restrito), considerando o atual curso dos acontecimentos e o nível de conscientização popular sobre a escassez de água?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI – Acredito que o aviso que a natureza nos enviou vai ser ouvido. O governo esta ignorando esses indicativos e tomando ações paliativas, gastando na construção de estruturas de captação e transporte de água, mas como vimos o problema é a diminuição das chuvas. O pouco que tem chovido é escoado rapidamente causando enchentes e não infiltrando no solo. As previsões para o próximo ano hidrológico não indicam aumento de precipitação. Esta na hora de mudarmos nossa conduta.

DIÁRIO POPULAR – O sr. acha provável que em 20 ou 30 anos os conflitos pela água se tornem uma realidade da qual não possamos fugir?
JOSÉ ÂNGELO PAGANINI – Em várias localidades do estado o conflito já esta ocorrendo. Se nada for feito em breve, não será necessário 20 anos, presenciaremos esses conflitos nos Vale do Aço e do Rio Doce.


A água do rio deu lugar a uma praia de grande extensão na margem direita do rio

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