Cultura

A Princesa do Blues: o elo das águas do Mississipi e o Rio Doce

A interpretação da timotense Nívea Paula é comparada ao melhor do blues de Bessie Smith e Etta James

Ela diz ser muito jovem. Sustenta a tese de que ainda é uma aprendiz. Afinal de contas, Nívea Paula nasceu ontem, só tem 22 anos. Tempo insuficiente para realizar algo expressivo, certo? A resposta poderia ser lógica, mas a exatidão do cálculo não costuma morar no barro das margens dos rios. Locais úmidos e férteis, onde germinaram os sons que essa menina negra emite desde pequenininha. Deve haver alguma ligação misteriosa entre as águas escuras do Rio Mississipi nos Estados Unidos com o leito do Rio Doce que passa na porta de sua casa em Timóteo, Minas Gerais.
A lama do Mississipi marcou os primeiros passos dos músicos negros americanos inventores do Gospel, do Blues, do Jazz e do Rock. Estilos musicais que influenciaram e influenciam o mundo inteiro. Certamente, alguma substância inspiradora e barrenta pode ter descido de lá em alguma corrente invisível para moldar a personalidade artística dessa cantora. O olhar profundo, o andar imponente e elegante de uma princesa africana, a postura altiva de mulher topetuda e brava não deixam pairar dúvidas: é uma cantora de blues ao melhor estilo de Bessie Smith e Etta James.
Os pais lhe ensinaram a cantar. Com o ex-ritimista da Escola de Samba do Quitandinha, senhor Celso Roque da Silva, ela aprendeu o swing negro de Michael Jackson. James Brown e do sambista Dicró. Com os louvores da música gospel das igrejas evangélicas que sua mãe Doreci dos Reis Pereira da Silva frequentava, ela descobriu a entrega espiritual da arte de interpretar. Aos 13 anos, mostrava outro dom, compor músicas de louvor a Deus. Mas foi aos 16 que ocorreu algo que iria mudar definitivamente sua vida. Entrou para as aulas de canto da Fundação Emalto, com o professor Ivenilton Amorim que, logo, logo percebeu que estava lidando com um talento raro. Teve outros mestres como Gilberto Rosendo. E aos 17 anos, se apresentou para um dono de uma banda de baile. Surgia ali uma nova cantora no Vale.

BAILES DE BANDAS
Defender repertório variado das divas dos anos 80, Mariah Carey, Whitney e Toni Braxton em festas de gala fazia bem à moça, mas Nívea queria muito mais. Entrou para banda Negro Gato, com a qual fez duas apresentação em 2011 no Teatro do Unileste e na Fundação Acesita. Neste ano participou de eventos como -Q Cult. no espaço Hibridus com o criativo grupo Bélico, num momento que ela considera de extrema importância, pois estabelece parceria com músicos que dão visibilidade ao seu trabalho.

POEIRA E PALCOS
Com a poeira das estradas e a experiência dos palcos nas veias, um outro impulso toma conta da artista. O caldo cultural herdado dos pais começava a ferver dentro de sua alma inquieta. Nívea Paula concebe suas primeiras composições não religiosas: “Amar em Paz” e “Tanguinho”. Você deve estranhar. O que o tango tem a ver com a Black Music? Ela só escreveu essa belíssima canção quando descobriu que o ritmo que faz a fama dos portenhos no mundo nasceu dos negros que lá habitavam e foram praticamente extintos após fim da escravidão no continente.
Por ironia, Tanguinho é a música que mais projetou o nome de Nívia Paula. Acompanhada pelo amigo pianista Breno Almeida foi classificada no Prêmio de música das Minas Gerais em Viçosa. O primeiro festival marcou a cantora. Ganhou elogios de músicos renomados e encantou a todos à primeira audição. Quem quiser desfrutar desse privilégio é só acessar o blog Eucentrismo (http://www.eucentrico.blogspot.com).

INFLUÊNCIAS E AFLUENTES
Fã de Elis Regina, da filha Maria Rita e da cantora e compositora inglesa Corinne Bailey Rae, Nívea é dona de um jeito de cantar visceral. Tal qual suas musas inspiradoras, seu canto é pura entrega, corpo e alma totalmente integrados ao som dos instrumentos. Sua voz flui na melodia, às vezes com calmaria, outras como corrente bravia. Indecifrável, o seu timbre brilhante é raro exibe um trinado especial impossível de não ser percebido por um ouvido atencioso e de bom gosto.
Aos 22 anos, essa cantora e compositora do nosso Vale ainda é a nascente que vai desaguar numa carreira de muito sucesso. Com sua interpretação poderosa e suas mais de 20 (vinte canções), todas com atmosfera de blues, aguardamos a cada ano que as margens desse rio se alargue para além de nossa região e do nosso Estado.
Estudante de Licenciatura em Música pela UnB (Universidade de Brasília), Nívea deseja se tornar musicoterapeuta e continuar sua carreira de cantora, que ela não sabe onde vai dar. Sua pouca idade e as coincidências ilógicas com as carreiras das melhores cantoras americanas que souberam muito bem misturar o canto religioso à musicalidade africana indicam um caminho promissor. Ao ouvir a negra Nívea soltar sua belíssima voz no ritmo quatro por quatro do blues, uma verdade se impõe sobre nossos parcos conhecimentos de hidrografia: o Rio Doce é afluente do Mississipi.

(*) Sávio Tarso é cineasta e professor de jornalismo.

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